Por que encenar "Medeia" de novo?
Cantora e atriz Assucena – foto de Angélica Goudinho
Deve ter muita gente se
perguntando isso, principalmente quem acompanha o blog e tem visto a frequência
absurda com que esse mito ganha os palcos e chegou às telinhas durante o
isolamento da pandemia de covid-19.
E será que dá pra
responder a essa pergunta?
Duas dramaturgas produziram, no Brasil e na Holanda, em 2016, textos sobre o mito de Medeia para hoje: Mata teu pai (2017), da brasileira Grace Passô, e Eu não vou fazer Medeia (2022), da holandesa Magne van den Berg, tradução de Jonathan Andrade, ambos editados pela Cobogó, ambos premiados nos seus respectivos países.
Acontece que dá pra ouvir
a voz de Medeia, a princesa chamada “bárbara, feiticeira, assassina”, em cada
pessoa que se identifica como mulher. Isso não foi só ontem. Não é só hoje. Será
sempre.
Nessas dramaturgias
recentes, a peça grega canônica de Eurípides remanesce em duas personagens
emblemáticas: a protagonista, que dá nome à tragédia, e o Coro. Não têm voz nem
Jasão nem Creonte nem Egeu.
Essa Medeia, sujeito
trágico maleável, é uma expatriada no Brasil e uma atriz apartada na Holanda.
Daí que um grito do tipo “eu, afinal” se encaixe tão bem nos dois enredos. Tudo
indica que já chega de a mulher ceder sempre em favor do bem-estar coletivo.
Mas, se refletirmos melhor
sobre o que diz Medeia desde sempre, é esse mesmo grito: “Basta!” E fica a
pergunta sem resposta: “Será que tem alguém ouvindo?”
Agora, vamos ao espetáculo.
Mata teu pai (ópera-balada)
Dramaturgia: Grace Passô
Direção: Inez Viana
Elenco: Assucena (Medeia), Eme Barbassa, Joana dos Santos, Warley Noua (vizinhas), com participação especial de Aivan.
Composições originais: Vidal Assis
Direção musical e trilha ao vivo: Barulhista
Interlocução artística: Fabiano Dadado de Freitas
Iluminação: Sarah Salgado
Cenário: Ailton Barros
Figurino: Kleber Montanheiro
60 min.
17 ago. a 9 set. 2022 – ter. a sex. 20h30
Sesc Pompeia – Espaço Cênico
Ingressos
Visto em 17 ago. 2022 (estreia)
Fotos da estreia: @renatateixeira.site
Sinopse
Segunda versão da trilogia
do espetáculo “Mata teu pai”, de Grace Passô, agora no formato de ópera-balada,
onde a protagonista, Medeia, será interpretada por uma mulher trans, a cantora
e atriz Assucena, e será acompanhada por um coro de mulheres trans e travestis.
(divulgação)
COMENTÁRIO
É pra ser underground,
entenda bem. O Espaço Cênico (não o palco principal de duas faces) do Sesc
Pompeia, na capital paulista, se presta a muitas configurações. A de agora desmonta
a concepção do palco italiano por completo (foto acima) e põe a encenação nos envolvendo, o
público, seis dezenas de gente só – e, por isso, melhor correr e comprar o
ingresso, porque tá se esgotando.
Fico pensando se novas
temporadas respeitarão o ambiente underground que vai bem com esta
montagem do texto de Grace Passô como “ópera-balada”, embora eu não saiba muito
bem o que isso quer dizer. A divulgação informa que o termo surgiu na Inglaterra
do século 18, satirizando as convenções da ópera-ópera por meio de melodias de
estilo popular.
Ah, sim! Faz sentido. A
voz da cantora baiana Assucena, mulher trans, é sedutora – maviosa, diriam
alguns – e executa com competência as baladas de @vidal.assis, que enxertam no
espetáculo um tom mais de drama e menos de tragédia. Como é ópera, a
dramaturgia se torna um libreto com onze movimentos.
Isso é bem diferente do que acontecia na peça que tinha a atriz e comediante Debora Lamm como protagonista. Muito se falou sobre essa montagem, que eu vi mais de uma vez e sobre a qual escrevi aqui. A produção de 2017 era teatro-teatro. Agora, a encenadora Inez Viana realiza a segunda produção do seu projeto de trilogia, que ainda terá Mata teu pai como um espetáculo de dança, com coreografia de Cristina Moura. Sugiro tomar as produções como um tríptico: uma ao lado da outra fará todo o sentido.
A própria Inez Viana dá a deixa quando diz no programa: “Mata teu pai segue se expandindo... Me surpreendo com o ecoar desse discurso ganhando renovados sentidos, com novos corpos se apropriando dele, nos mostrando inéditas formas de exílio e acolhimento”.
Talvez, dos muitos méritos
do texto de Grace Passô, o maior seja o de ter abraçado a persistente situação
de exílio, no mais amplo sentido, de toda pessoa que se identifique como mulher:
seus peitos estão sempre cheios de leite e de sangue. É inevitável a imagem de
Marília Pêra no Pixote (1980), filme de Hector Babenco (1946-2016).
Haverá sempre novos corpos
se apropriando de Medeia e de suas crias.
Está aí, é claro, a perenidade
dos mitos (a mitologia clássica é apenas a mais difundida no Ocidente).
Está aí, com certeza, o porquê
de continuarmos a ler, reler, ver, ouvir, relerverouvir os mitos, Medeia,
Passô.
Se entende o que eu digo, entenderá a força de um Coro como o dessa ópera-balada, como já havia sido tremenda a força do Coro das Meninas da Gambôa. Interessa notar que também elas se assumem Medeia por vezes. O texto de Passô fica ecoando no efeito jogral.
Medeia ecoa por eras e corpos.
Coro, da esq.: @emebarbassa @assucenaassucena
@warleynoua @joana.viuvanegra @aivan.oficial
RESENHA SEM COMPROMISSO
Eu não vou fazer Medeia
não tem medeia esta noite
exatamente como o título dessa crítica de ontem
não é medeia
a atuação da atriz
não é medeia
mas o que a minha atuação era
ele não disse
ele não teve espaço suficiente para isso
não teve palavras para isso
uma minicrítica
mas não é por isso
que eu estou indo embora agora
eu já tive tantas críticas ruins na minha vida
tanto bem escritas como mal escritas
não é por isso
isso você supera
cada vez mais rápido na verdade
sou eu
só eu
que quero ir embora daqui
(2022, p. 28)
E agora você vai dizer que
o que eu digo que é Medeia não é Medeia. Mas é. Medeia não
é só um argumento pra essa dramaturgia. É Medeia ela mesma.
eu a amei
a personagem
a transformação
do sofrimento e da dor
as explosões de raiva e sua vingança
o papel não era para mim na verdade
e mesmo assim caiu como uma luva
eu não sou uma atriz de tragédias
mas eu pude me identificar completamente com ela
tão abandonada
tão rejeitada
tão humilhada
e então estragar a parte mais bonita de si
a coisa mais doce que tinha completamente destruída
os pilares que sustentavam sua existência quebrados
por vingança
vingança não é uma coisa que eu consideraria
mas eu a compreendo
o desejo de matar
querendo matar a coisa mais bonita
porque a coisa mais bonita em você foi morta
o amor
a dedicação
o compromisso total
sem dúvida
sem rede de proteção
mas tudo isso
tudo por amor
um homem uma profissão uma criança
(2022, pp. 41-42)
Medeia atravessa corpos que
sobem no tablado. Não se trata tanto de vingança, bem mais de defesa. Melhor até,
de sobrevivência. O Coro, sozinho em cena, lamenta-se de não ter agido para
evitar o ocorrido.
ela partiu
saiu pela porta
na direção oposta à do público que começava a chegar
voltou para casa
e está sentada lá agora
encostada na fachada
ainda quente do sol
contemplando
ela não sabe o que sentir
ou como ela se sente
ela não sente nada
nenhum alívio
e nenhum arrependimento
não tem nenhum arrependimento
nenhum arrependimento e nenhuma incerteza
nenhuma culpa e nenhum vestígio de dúvida
(2022, pp. 50-51)
Você enxerga a
reconfiguração do deus ex machina que eu enxergo? Sublime!
Se eu disser mais, será
demais para uma RESENHA SEM COMPROMISSO. Digo apenas que o autor da minicrítica
não entendeu nada. Você, sim. Espero.
Renata
Cazarini
Grace Passô lendo um
trecho de Mata teu pai.
O programa de Mata teu pai
– Ópera-balada em PDF.
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