AGAMENON 12H

E amanhã quando fores à escola e te olharem para a cara – porque vim do supermercado e dei-te porrada – vais dizer que andaste por aí

E quando te perguntarem por onde andaste

dizes: vim de Troia!

De dar pancadas e de levar pancadas!*

De conhecer gente

De conhecer dois tipos de gente:

os que especulam com dinheiro

e os que especulam com os sentimentos,

que são os piores

Porque dizem que te oferecem o coração quando na verdade

estão a jogar uma merda de uma partida de xadrez

(2014, p. 23)

*em português de Portugal, “chapadas”. Da coleção Livrinhos de Teatro 84 (2014). A pontuação é a do texto impresso em livro.

Esse excerto da peça do dramaturgo e encenador argentino radicado na Espanha Rodrigo García é uma das poucas referências à cultura clássica no breve monólogo “Agamémnon: Vim do supermercado e dei porrada ao meu filho”, encenado pela primeira vez no festival Le Orestiadi, em Gibellina, na Sicília, em 11 de setembro de 2003, sob a direção do autor. Recebeu o prêmio italiano Ubu como melhor peça estrangeira encenada na Itália na edição 2003/2004. É possível ver uma performance neste link. O texto começa a partir de 33 min. e 56 seg. Em espanhol. O público ri e eu não sei bem de quê, tamanha a tragicidade da peça. Só se for o riso nervoso causado pelo desconforto do trágico em grau máximo.

O jornal francês Le Monde, num artigo do enviado especial ao festival, Jean-Louis Perrier, dizia que era melhor nem tentar procurar muito por Ésquilo no Agamêmnon de García: “A evocação da Oresteia é apenas um convite para tocar na ideia da tragédia em escala planetária”. Leia, em francês, aqui.

De fato, o poderio econômico das sete nações mais industrializadas (G-7) é simbolizado pela profusão de produtos no supermercado, aquele do subtítulo, enquanto as nações mesmas são reificadas como asinhas do KFC (Kentucky Fried Chicken). Seria cômico se não fosse trágico.


Limpo a mesa
                              tiro tudo o que há em cima da mesa, as Coca-Colas
                              os restos dos molhos, tudo
                              E deixo o espaço limpo só para as asinhas de frango
                              Uma duas sete asinhas de frango
                              Coloco-as na mesa, cada qual no seu sítio
                              perfeitas
                              e agarro no ketchup e escrevo bem grande na mesa
                              a palavra
                              TRAGÉDIA
                              (2014, p. 28)

Na obra de García, o mito de Agamêmnon é tratado inicialmente na peça “Martillo”, de 1989, sob a ótica de Clitemnestra, distribuídos os monólogos dos personagens na primeira parte e os diálogos, na segunda. Não encontrei registro de que tenha sido encenada.

Isso tudo é um preâmbulo para o post sobre Agamenon 12h, o texto de García montado agora em São Paulo.

Mercedes Vulcão em 10 ago. 2022

 Ficha técnica

Mito: Agamêmnon

Texto: Rodrigo García

Tradução: Carlos Canhameiro, Chico Lima

Concepção e direção: Carlos Canhameiro

Elenco: Amanda Lyra, Cauê Gouveia, Chico Lima, Danielli Mendes, Eduardo Bordinhon, Janaina Leite, Jorge Neto, José Roberto Jardim, Mariana Senne, Mercedez Vulcão, Nilceia Vicente, Verônica Valenttino

Trilha sonora: Guilherme Marques, Paula Mirhan

Desenho de som: Lilla Stipp

Cenário: Renato Bolelli Rebouças

Figurino: Anuro, Cacau Francisco

Iluminação: Daniel Gonzalez

Sesc Av. Paulista - SP

10 a 27 ago. 2022 – 4ª a sáb.

10 às 22 horas ininterruptas

Assistido em diferentes momentos nos dias 10 e 12 ago. 2022

Sinopse

Com concepção e direção de Carlos Canhameiro, ao longo de 12 horas, 12 artistas se revezam na Praça do Sesc Avenida Paulista para apresentar 12 versões de um mesmo texto. E o público é livre para acompanhar essa experiência por quanto tempo quiser. Se a tragédia começa no mundo industrializado e se temos gastado a nossa vida fazendo o que nos disseram, como diz o texto, em Agamenon 12h, são as diferentes formas de criar uma cena que reinventam a tragédia diária e o modo de passar o tempo. (divulgação)

Nilceia Vicente em 10 ago. 2022

COMENTÁRIO

Não tem Egisto nem Clitemnestra nem Cassandra como personagens, apenas são evocados num jogo para confundir imagens do presente e do passado.


E vamos mandar postais com fotos

de famosos mas com nome trocado

Um postal com a cara de Hillary Clinton que diga: Clitemnestra

Um com a cara de Bill Clinton que diga: Agamêmnon

Um de Mônica Lewinsky que diga: Cassandra

Um de Dodi al Fayed que diga: Egisto

Um de Lady Di que diga: Cassandra

E um do príncipe Carlos [Charles] que diga: Agamêmnon cornudo

[...]

E um do povo iraquiano que diga: troianos

E outro de uns argentinos que diga: troianos

E um de uns africanos que diga: troianos

(2014, p. 24)

Tem Agamêmnon. Mas qual Agamêmnon? Brutal, sem dúvida, nas palavras e nas ações. Ele baixa porrada na mulher e no filho, contrariado com a malfadada compra do mês: ele é derrotado pelo marketing e a sanha consumista, que rechaça e condena. Afinal, são três carrinhos cheios de tudo de que a família não precisa.

Essa violência doméstica configura o sujeito trágico em franco combate contra o capitalismo e contra as pessoas que a ele se subjugam, como a caixa do supermercado e os funcionários do fast-food. Esse Agamêmnon lamenta o sacrifício da própria existência: “passamos a vida a fazer o que nos disseram...”

É profunda a tragédia que vive esse Agamêmnon: ele vê a esperança não como um sonho, mas como um projeto de mudança de vontades e atitudes, desacreditado pelos demais. Não há ventos de mudanças.

Títulos de outras duas peças, ambas de 2002, são indícios da crítica arguta de García ao capitalismo: “Compré una pala en Ikea para cavar mi tumba” e “La historia de Ronald, el payaso de McDonald’s”. No Brasil, encenou em 2014, na 1ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), a peça “Gólgota Picnic” (2011), num cenário composto com 25 mil pães de hambúrguer, que eu vi.

“A radicalidade com que García reescreve é um sinal de uma ruptura quase violenta com o antigo e, ao mesmo tempo, de uma criatividade bizarra”, afirma Daniela Palmeri na tese defendida na Universitat Autònoma de Barcelona, área de estudos de teatro, sob o título “Indagaciones sobre la reescritura del mito griego en el teatro contemporáneo. Las Orestíadas de la Socìetas Raffaello Sanzio, Mapa Teatro, Rodrigo García y Yael Farber”, de 2013. Ela também observa que a dramaturgia do argentino tem um caráter tão internacional que, talvez, se conecte mais com a do alemão Heiner Müller (1929-1995) do que com a de outros autores espanhóis. Se tiver interesse, leia aqui.

Numa entrevista publicada em 2020, o dramaturgo reconhece trafegar numa área de influências: “Minha obra trata de como pôr a palavra no teatro, porque, no fundo, sou marcado pela tradição. É uma dificuldade clássica. Escrevi nos anos 1980/1990, como deu, monólogos copiados formalmente de Peter Handke, Thomas Bernhard e de Heiner Müller – ao menos disse o que tinha a dizer. O conteúdo era autêntico e quero crer que conseguia sobrepor-se às influências que recebi e mencionei. Ainda que eu seja crítico dela, não creio que essa obra de juventude seja totalmente desprezível”. A entrevista, na revista Acotaciones. Revista de Investigación y Creación Teatral.

Público no espaço cênico no térreo do Sesc Av. Paulista em 10 ago. 2022

Parece fantasia quando você adentra o espaço reservado para a sessão de 12 horas ininterruptas do texto de García em plena avenida Paulista. Está logo ali, no nível térreo, de frente para a entrada principal do Sesc: é uma transição imediata do real para o ficcional, só que o cenário interno espelha muitas das bancas que se vê ali fora, nas amplas calçadas da avenida. E você chega e se acomoda e não tem que mostrar ingresso e não tem que pedir desculpa pelo horário de chegada nem de saída. Essa experiência sem barreiras econômicas ou protocolares é do que o teatro precisa com mais frequência: acesso livre e desimpedido a um espectador desavisado e curioso.

Também é singular a experiência de não ter o encerramento que cobra aplausos, porque o que acontece é que a cada hora cheia soa uma sirene, como se fosse de fábrica, e novo atuante toma o lugar do anterior sem intervalo nem cumprimento. É uma linha de produção de um mesmo texto com uma hora para cada um dos doze atuantes. Essa transição é parte da experiência teatral e não deve ser ignorada pelo espectador.

A movimentação cênica é da ordem do único, isto é, cada artista faz uma ocupação própria do espaço. @nilceia_vicente, por exemplo, transita entre a audiência arrastando três grandes ursos de pelúcia e avança pelas escadas rolantes que ladeiam o espaço cênico, enquanto @joserobertojardim (foto da capa do post) recorre praticamente ao imobilismo e a dispositivos eletrônicos, bem como a um comentador das suas falas. Duas performances distintas e arrebatadoras.

Nilceia Vicente ocupando o espaço cênico em 10 ago. 2022

Além da instalação cenográfica, que merece ser observada em seus detalhes, o figurino também dá unidade à montagem de 12 horas: trata-se de um uniforme multicor, estampado com o logotipo de um capacete e os dizeres "no pen, no gain" - claro, ironia de dramaturgo com a famosa frase "no pain, no gain".

Este é o tipo de post que não teria como acabar já que vou ver mais vezes em horas aleatórias a montagem e não sei que performer vai se apresentar porque não há agenda prévia disponível. Torcendo para me deparar com @janainafontesleite, mas vai acontecer?

Renata Cazarini

Leia esta reportagem do Estadão, que traz detalhes sobre motivações do encenador da montagem brasileira.

A Folha de S. Paulo também publicou um texto, do qual discordo muito, mas fica o registro.

O texto da peça traduzida em Portugal, que eu tenho em livro, pode ser lido aqui.

O encenador Carlos Canhameiro deixou a tradução brasileira disponível aqui.


Comentários