PENÉLOPE É ELE


Nada podia ser mais diferente, tratando do mesmo tema, que as situações cênicas, por assim dizer, de “Ítaca, 365, apto 23” e, simplesmente, “Penélope”. Ambas, é claro, resgatam a “Odisseia”, de Homero, mas adotam procedimentos teatrais distintos e abordagens textuais, eu diria, opostas. Sugiro que acompanhe os dados sobre cada um dos espetáculos e, na sequência, leia o comentário mais abrangente sobre o que eu vi.


PENÉLOPE (web peça)

Tema: Odisseia, de Homero

Dramaturgia: Lígia Souza

Direção: Nadja Naira

Elenco: Uyara Torrente (Ela) e Pablito Kucarz (Ele)

Duração: 35 min.

Temporada: agosto, setembro, outubro, 28/29.nov.2020 

Assistido em: 29 nov.2020

Plataforma: Instagram @_la.lettre_


“Penélope” é um texto de Lígia Souza que conta a história de um homem, uma mulher e seu distanciamento. Em agosto de 2020, com mais de 150 dias de isolamento social, o texto foi encenado como experimento para ambiente virtual. (divulgação)

 

Na história de origem, Penélope fica 20 anos esperando que Ulisses retorne da Guerra de Tróia. Essa atitude, esse hábito da espera, parece ter perseguido as mulheres por muitos anos. Na releitura escrita por Lígia Souza e dirigida por Nadja Naira, a personagem feminina vai em busca das experiências que nunca lhe foram permitidas. Uma volta ao mundo. Mas, antes de tudo, o que ela busca é a liberdade de escolher genuinamente o que quer pra sua vida. Ficar ou partir nunca mais serão estigmas, heranças de gênero. (divulgação)

 

COMENTÁRIO

A subversão é total no texto de Lígia Souza, que saiu pelo selo independente La Lettre numa brochurazinha. São um irmão e uma irmã, e quem partiu foi Ela, que viveu suas epopeias e combateu suas guerras (p.32). Ele ficou, cuidou da mãe e do pai até morrerem. Ele não se conforma, afinal, Ela é a filha, mulher, cuidadora natural (p.31). Quanto tempo durou essa viagem por muitas terras, ares e mares, não se sabe. Ela tem 35 anos e viveu. Agora, a aproximação com o irmão parece que se arrasta por 12 anos.


A estratégia foi de live pelo Instagram, com temporada de oito apresentações até o final de novembro. 




Ítaca, 365, apto 23

Tema: Odisseia, de Homero

Roteiro: Vinícius Calderoni e Guilherme Gontijo Flores

Direção: Cacá Carvalho

Elenco: Cacá Carvalho (Odisseu), Vera Sala (Penélope), Theo Retti (Telêmaco)

Duração: 50 min.

Temporada: 7 a 13 dez.2020

Assistido em: 7 e 9 dez.2020

Plataforma: Copacabanaplay (indisponível)


Um homem não sabe por que vai, mas sabe porque volta. Inspirado na “Odisseia”, de Homero, Cacá Carvalho retorna a sua Ítaca, evocando memórias, saudades e experiências de sua jornada pessoal. Ítaca é a casa de Odisseu. O lugar de onde partir para as lutas da vida. É para onde volta cheio de feitos, conquistas e derrotas. Em “Ítaca, 365, apto. 23”, Cacá Carvalho nos convida a encarar com ele o passado para inaugurar um novo presente em meio à pandemia, a nossa guerra contemporânea. Tudo aquilo que deixamos pra trás, quando decidimos partir, ainda permanece lá. Mas não exatamente igual. Tudo muda, tudo se transforma. Nossa guerra atual nos interrompe, nos obriga a viajar por nossas entranhas como guerreiros, em um mundo empoeirado, embolorado, esquecido e cheio de belezas. Confinados em casa por conta dessa pandemia, descobrimos que ficar em casa é uma oportunidade que todos nós guerreiros ganhamos para olharmos para o nosso interior e de nossa casa. (divulgação)


COMENTÁRIO

Revisitando objetos e mobília deixados há vinte anos, este Odisseu retorna a Ítaca, um apartamento fechado com cadeiras cobertas por lençóis. O único ser vivente que ele encontra é o cão Argo, que logo se despede. Penélope e Telêmaco são apenas fantasmas. Custou tanto a Odisseu esse regresso que ele já nem sabe quem venceu a guerra de Troia. Arrisca que tenham sido os gregos.  

 

O audiovisual tem 50 minutos e é uma homenagem a Etelvina Pereira, a mãe do ator e diretor.

 


 

COMENTÁRIO CASADO

Economia de meios de um lado, transbordamento de elementos cênicos de outro. No texto, não é diferente. Na elocução também. Na forma de entrega para o público, distam de novo: ao vivo, um; gravado, o outro. “Penélope” traz a subversão dos papéis tradicionais do casal de Ítaca, enquanto “Ítaca” resgata o homem aventureiro. 

 

Um amor em cada porto, talvez se possa dizer: “Ah, Telêmaco meu, as ilhas se parecem tão iguais”. Cacá-Odisseu tem sonhos para o amado filho: “Roga que tua rota seja longa. Repleta de peripécias, repleta de conhecimentos. Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente. Tua sina te assina esse destino”. Depois das viagens, a sabedoria e a vida plena: “Entenderás, finalmente, os segredos das Ítacas”. A Penélope aqui é uma ausência sofrida, que leva Cacá-Odisseu a gritar seu nome da janela do apartamento para o qual volta, na rua Ítaca, no. 365. Mas ainda é a Penélope tecelã, presa pelos fios da longa espera. Sem voz. 

 



Já a personagem Ela de “Penélope” abre o texto com a palavra “sim”, ansiosa pelo mundo: 


“eu fui embora porque eu tenho um reloginho dentro de mim, uma bomba relógio que faz

tum tum

tum tum

tum sim

tum sim

sim sim

sim sim

sim sim

É isso que me avisa a hora de partir”.

Logo se vê que a expressão é outra, poética também, sendo coloquial. 





Os filhos da peça “Penélope” tinham pais, relegados por Ela e cuidados por Ele apenas como obrigação de quem sobrou em casa. Em “Ítaca”, Cacá-Odisseu homenageia a mãe, simulando uma catábase, a viagem ao mundo dos mortos, com a impressão de uma foto dela pregada a uma cadeira e uma voz em off quase fantasmagórica a inquirir o filho sobre suas andanças. Esse trecho final do audiovisual se arrasta muito e, para mim, dispersa a atenção.


O único ponto de contato que consigo salientar nas duas situações cênicas é a valorização da experiência da odisseia propriamente. O que parece inevitável em se tratando do tema que é. Posso considerar, talvez, o regresso à casa, o nóstos, como uma experiência traumática nas duas produções, mas ainda qualitativamente diferentes para cada um desses Odisseus. Ela ousa todas as experiências estando ali naquele lugar. Cacá-Odisseu se contenta em revirar baús, saudades.

Renata Cazarini


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