MEDEIA – ESTREIA DE 2021


Uma nova “Medeia”, baseada em Eurípides, tem estreia programada para janeiro. “Medeia: por todas as nossas relações”, de Pernambuco, teve pré-estreia em dezembro. E eu vi.


MEDEIA: POR TODAS AS NOSSAS RELAÇÕES

Tema: Medeia, de Eurípides

Roteiro adaptado: Jhanaína Gomes e Jr. Aguiar

Direção: Jhanaína Gomes e Jr. Aguiar

Elenco: Jhanaína Gomes (Medeia), Jr. Aguiar (Jasão, Creonte, Egeu)

Realização: Coletivo Grão Comum e Corpo Semente Sagrada

Duração: 75 min.

Assistido em: 19 dez.2020 (pré-estreia)

Plataforma: Twitch ao vivo


Espetáculo inspirado em livre adaptação da obra de Eurípides. Repudiada por Jasão, Medeia vê seu amor transformar-se em ódio. E por muito tempo ela ficou em silêncio. Mas agora Medeia irá falar por todas as nossas relações e vai contar tudo o que aconteceu na sua condição de mulher traída e vai se libertar do estigma de que enlouqueceu. Na verdade, Medeia está mais lúcida do que nunca e sua vingança irá atingir a dimensão de uma verdadeira tragédia. Uma adaptação protofeminista, revelando as desvantagens de ser uma mulher numa sociedade patriarcal. (Divulgação)


COMENTÁRIO

A montagem, com foco no casal protagonista, tem a vantagem de construir com intensidade a tensa relação entre Medeia e Jasão. Muitas vezes, ao ver tantas e tantas Medeias, tenho a impressão de que não se consegue estabelecer a crise e seu ponto de ruptura no palco/tela. Neste projeto, talvez o pulo-do-gato sejam os 10 minutos de coreografia do casal se enlaçando e se empurrando e se enlaçando ao som de Letrux (“Bota na tua cabeça que isso aqui vai render”). 




Importa notar que a peça se desenvolve numa casa, com exploração dos espaços internos e externos, com um cameraman seguindo os movimentos dos atores. A transmissão foi ao vivo na noite da pré-estreia, mas a gravação ficou temporariamente disponível na plataforma, ou seja, no modelo ON-live, como o batizei há meses. A qualidade da imagem, decorrente do upload, era baixa, por isso, prints também não tão bons. Para a estreia, prevista para janeiro, isso precisa ser melhorado.




Considero que a atriz Jhanaína Gomes sustenta bem o espetáculo, sem arrebatamento, mas com regularidade. Nos 15 minutos finais da peça, feito maga preparando a poção venenosa, sua coreografia evoca a imagem prodigiosa de Medeia, que dispensa a carruagem do avo Sol no desfecho, sem deus ex machina. O ator Jr. Aguiar funciona como o deuteragonista quase sempre – Jasão, Creonte, Egeu. Como Jasão, o herói grego e opressor da princesa bárbara, não provoca a repulsa que seria de se esperar numa peça que se propõe a denunciar o patriarcado. Há um jogo de forças correndo no desenrolar da trama em que Medeia se avulta, desqualificando fisicamente o rótulo de fragilidade que Jasão quer colar na mulher repudiada.




Minha dificuldade maior com esta “livre adaptação” é que ela não seja tão livre. Eu explico: os 20 minutos iniciais da peça são como que um prólogo, mas do que já se conhece da tradição de Medeia na versão de Eurípides, ou seja, da desarrazoada filicida. Medeia sentada no sofá, Jasão aos seus pés. Tudo já se passou, Jasão quer enterrar o que sobrou dos filhos. Medeia ouve-o em silêncio por seis minutos. Então, toma a palavra e desafia a versão da narrativa feita por Jasão e por Eurípides e pelo patriarcado. Medeia diz que não obedece mais a essa versão e convida o antagonista a recontar a história novelesca que agrada tanto. Ela ressalta que estão no ano 2020, século XXI: “As pessoas estão vendo a tua máscara cair”.




Tudo muito bem. Muitas novas Medeias vão por essa senda do feminismo, algumas também pela abordagem do desterro e até da diáspora africana. Só que antes que isso se confirme nesta montagem, para além dessas palavras iniciais, que funcionam como um posicionamento ideológico, o casal de atores compactua de se “reencontrar na história que todo mundo conhece”. E é isso que decorre. Com adaptações aqui e ali, a peça segue Eurípides. Sem o Coro, é verdade, apenas referido por Medeia como “minhas amigas”. Essa Medeia ainda atribui seu desatino a uma paixão avassaladora. Essa Medeia ainda quer a vingança nos moldes da tradição. Outras tantas novas Medeias já não.

Renata Cazarini


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