ROBERTO ALVIM: O QUE ELE PENSA DO TEATRO

Roberto Alvim. Crédito: Bruno Santos / FSP

“Maratona de dramaturgia”, livro publicado este ano pelas Edições Sesc e Cobogó, reúne a transcrição de dois dias de conversas com 12 dramaturgos, uma ‘maratona’ realizada em junho de 2018 no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Foram ‘provocadores’ Isabel Diegues, Kil Abreu, José Fernando Peixoto de Azevedo. Os temas em foco eram cinco: forma, experiência, condições de produção, tradição e público. Entre os dramaturgos, estava Roberto Alvim. Seguem trechos:







CRÍTICA À “TENDÊNCIA DO MOMENTO”
“A gente é bombardeado o tempo inteiro com uma imagem acerca do que é a vida, e de quais são as questões emergenciais de nossa época. E isso é um problema, às vezes. Porque a gente se pauta pelas manchetes de jornal, se pauta por aquilo que formas e discursos hegemônicos determinam como sendo a pauta do dia. Aquilo de que se deve tratar atualmente. Nós temos uma série de obras hoje, por exemplo, que estão dentro de uma determinada agenda do que sejam as questões importantes do nosso tempo. Isso vem a ocupar e ganhar uma série de editais, uma série de espaços. Vira aquela história de jornalista bobo. A tendência do momento. E nisso sempre há, por outro lado, uma grande balela. O teatro pode lidar com essas questões emergenciais”. (p.82)

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“É um paradoxo. Estamos respondendo ao nosso tempo, mas se respondermos ao nosso tempo do modo que o nosso tempo quer que nós respondamos, sairemos na capa do jornal, teremos uma crítica excelente, mas isso não contribuirá em nada para a história do teatro, e não será nem uma nota de rodapé na história do teatro. É um paradoxo da questão da experiência e do diálogo do teatro com o seu tempo”. (p.83)

TEATRO: “UMA INSTAURAÇÃO BIOFÍSICA QUADRIDIMENSIONAL”
“[n]a verdade, nem encaro o teatro como alguma coisa de que gosto, ou que amo profundamente. Encaro quase como uma espécie de condenação vocacional. Eu queria ser um astro do rock, mas Deus não me deu voz para isso. Então, de certo modo, essa coisa de reinventar a vida, de reinventar o homem através de uma instauração biofísica quadridimensional sempre foi algo com que muito organicamente lidei”. (p.84)


ROBERTO ALVIM, UM OUTRO SUJEITO
“Cada vez mais eu me vejo distante de qualquer programa estético, de qualquer tentativa de domar uma dinâmica de recepção da vida, de ‘experienciação’ da vida, e de resposta a essa experienciação através de obras de arte. De experienciação de obras de arte e de resposta à experienciação na minha vida. Porque uma questão estética é sempre uma questão existencial. E toda técnica que a gente emprega é uma visão de mundo inteira. Estou num momento de troca de sujeito. Bem sério, bem radical. E trocar o sujeito faz com que as coisas que fiz anteriormente não façam muito sentido para mim agora. Não que eu as negue, não que as chame de menores, mas foram feitas por um outro”. (p.84)

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“Citaria a velha frase de Heráclito (“velha”, no sentido cronológico): ‘Nenhum homem entra duas vezes no mesmo rio, por que não é o mesmo rio e não é o mesmo homem’. Estamos em transformação permanente. Amarrar-se a um conteúdo programático de criação para sua vida equivale a se amarrar a um filtro ideológico a partir do qual você vai ver todas as situações. Ou a um filtro filosófico, ou a um filtro religioso”. (p.86)


POR UMA “ANÁLISE TÉCNICA CRITERIOSA”
“[n]a época do lançamento do Dramáticas do transumano [2011], formei uma espécie de seita – não em volta de mim, eu não era Jesus Cristo, eu era João Batista. Eu anunciava a chegada do Messias, e o Messias era cada um daqueles autores ali. Eles não me seguiam, eles seguiam a si mesmos. Acho que libertou muita gente, deu potência criativa para muita gente. Mas, hoje em dia, não trabalho mais assim. Não parto de uma recusa absolutamente fundamentalista de qualquer tradição, de qualquer sistema cênico preexistente. Procuro analisar as proposições estéticas, as poéticas de cada um dos autores, e perceber a eficácia, ou não, dos procedimentos adotados por ele naquela poética. Se eu não percebo a eficácia daquilo, faço sugestões, comentários, críticas. Noto por que aquilo não está ficando de pé, por que aquilo não está funcionando, porque são aspectos técnicos automaticamente apontados por uma análise técnica criteriosa”. (p.92)


O QUE É CULTURA
“Existe cultura e existe arte. Cultura é a regra, arte é a exceção. Eu acho lindo quando alguém, algum de nós tenta fazer uma obra de arte. Mas pode ser muito bom também fazer um produto cultural extremamente inteligente, que promova reflexões interessantes, tenha um aspecto crítico interessante, de divertimento. Divertido é o que nos tira do rumo em que estamos e nos leva para um outro lugar”. (p.92-93)


O QUE É ARTE
“Uma obra de arte – se a gente é um dramaturgo – é uma dramaturgia de invenção. Não estamos usando procedimentos, operações dramatúrgicas preexistentes, mas inventando operações dramatúrgicas que vão colaborar para a ampliação da experiência estética do nosso tempo, em direções até então desconhecidas. Mas admito que se façam produtos culturais hoje, contanto que eles lancem, em profundidade um olhar acerca da condição humana”. (p.93)


“MINHA CALÇA DO EXÉRCITO”
“Antes, havia uma mentalidade revolucionária em mim, agora estou bem mais conservador, vim hoje com a minha calça do exército. Antigamente eu era um revolucionário que queria destruir tudo, acabar com tudo, como todo revolucionário. Destruir a porra toda e reinventar a humanidade do zero. Hoje, mais velho [45 anos], vejo o quão complexas as coisas são, o quão ignorante eu era, em muitos aspectos, de achar que o ser humano estava dado na minha frente, estava posto, que eu já sabia tudo”. (p.93)


TRADIÇÃO CLÁSSICA NA REVISTA “CARAS”
“Sim, hoje me vejo completamente inserido dentro de uma tradição. Uma tradição de autores trágicos que começa com Ésquilo, que eu amo profundamente, que mudou minha vida. Traduzir, adaptar os textos do Ésquilo do original em 2011, 2012, montar, encenar as sete tragédias num projeto que nunca tinha sido feito antes na história, nem no Brasil, nem em lugar nenhum. As sete tragédias, uma após a outra, estrearam e ficaram em cartaz juntas, duas por dia. Os autores trágicos me levaram a perceber o que é o teatro. E essa definição do que é o teatro permanece a mesma para mim. Se atualiza cada vez mais profundamente em mim. Uma vez perguntaram para o Ésquilo – a revista Caras da época, do século quinto antes de Cristo – o que era o teatro para ele. E o Ésquilo respondeu: ‘O teatro é um buraco’. E, então, o repórter perguntou: ‘E com o que você preenche esse buraco?’. E o Ésquilo disse: ‘Eu preencho esse buraco com os meus piores medos e com os meus desejos mais inconfessáveis”. (p.94)


DIVINA TATTOO
“Tem uma frase aqui no meu braço que diz: Ad maiorem Dei gloriam (‘para a glória de Deus eterno’ [sic]). Faço teatro para Deus, para a glória de Deus eterno. E quem é Deus? Deus é o outro. Deus é tudo aquilo que não sou eu. Não posso fazer teatro para mim, tenho de fazer para o outro. E o outro é aquele que não conheço, aquele que não é o mesmo. O desconhecido que habita em você. É para isso, é para Deus que eu faço, isto é, para o grande Outro”. (p.96)


DRAMATURGO, DEUS DO GÊNESIS
“Quando a gente começa a escrever uma peça, é muito importante se colocar nesse lugar em que Deus estava na hora da criação do Universo. Se há uma analogia possível para nós, dramaturgos, é com esse Deus do Gênesis. Estamos diante de um lugar onde nada existe, e pela força do nosso verbo, pela força da linguagem, o tempo se cria, o espaço se cria, modos de subjetivação se criam. Um tipo de fruição do tempo, de conformação do espaço, um modo de subjetivação absolutamente específico e descolado do modo como a gente vive a nossa subjetividade aqui fora. Podem ser inventados, devem ser inventados. Uma poética é um jogo de linguagem e, hoje em dia, em que nós não temos nenhum jogo de linguagem hegemônico, cabe a cada dramaturgo inventar a sua poética, isto é, inventar as regras do seu jogo de linguagem, criar um mundo e inventar o modo como esse mundo funciona”. (p.100-101)


TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO
“Fidelidade, numa tradução, numa adaptação, tem a ver com habitar o mesmo lugar pulsivo que o autor estava na hora que escreveu aquilo ali. (...) É preciso ir nos textos originais, não nas traduções, olhar para aquela forma, procurar ativar aquela forma, encontrar esse lugar, esse inconsciente que se estruturou daquela maneira ali, e a partir desse mesmo lugar começar o processo de reescritura da obra. (p.102)

(...)

“Então, meu ponto, com esses clássicos, é tirar tudo que seja muito circunstancial, muito culturalmente circunstancial, e encontrar, de certa forma, o haikai desses clássicos, a essência pulsiva, mantendo a forma da frase de cada um dos autores originais. Manter a arquitetura linguística dos autores, mas secar o texto, no sentido de síntese/amplidão”. (p.102)


Veja nosso post sobre a montagem da “Fedra”, de Jean Racine, dirigida por Roberto Alvim em 2018.