CALÍGULA, O IMPERADOR OBCECADO PELO IMPOSSÍVEL



Relato e comentário
Por Augusto Cesar*

“Simplesmente senti em mim um súbito desejo do impossível”.
Calígula


No dia 26/11 tive a honra e o prazer de fazer parte do elenco da leitura encenada da peça “Calígula”, de Albert Camus, no Teatro Sesc Anchieta. Esta leitura faz parte do projeto “7 Leituras, 7 Autores, 7 Diretores” que a professora e diretora Eugênia Thereza de Andrade conduz neste Sesc há 13 anos, com produção de Messias Lima. Mais de 100 peças já foram lidas neste período, sob a direção de mais de 100 diretores, que conduziram um enorme contingente de mais de 1000 artistas e técnicos.


O tema deste ano de 2019 foi o Teatro do Absurdo e a peça “Calígula” foi escolhida para encerrar este ciclo. Embora não faça parte do grupo de peças que os teóricos com frequência classificam como peças do Teatro do Absurdo, “Calígula” fala do absurdo da vida.


A peça foi escrita em 1938, na Argélia, mas é possível ver sinais da violência, da perversão dos valores, das perseguições, indiferença e cinismo das pessoas em relação aos eventos então correntes na Europa antes da segunda guerra mundial, sendo, portanto, um texto com bastante ressonância com os tempos atuais.


Registros históricos nos informam que o reinado de Calígula (interpretado pelo ator Lee Taylor) durou apenas 4 anos, 37 a 41 d.C. Ele foi o terceiro imperador romano, um dos doze césares e ficou conhecido pelo poder extremamente centralizado, por sua excentricidade, crueldade, perversão sexual. Contudo, esta não é uma história sobre perversão sexual. Calígula quis perverter a moral.


Até a morte de sua irmã Drusila, com quem mantinha uma relação incestuosa, tudo ia bem no seu reinado. Ele tinha apenas que lidar com o Senado, a plebe e os deuses. Contudo, quando Drusila morre, seu mundo de ilusões desmorona e Calígula passa a ver o absurdo da vida. Como diz o velho Kerea (interpretado pelo ator Kiko Marques): “Não gosto nada disto. Tudo ia bem demais. Era um modelo de imperador”. Daí em diante, a faceta mais cruel e desajustada de sua personalidade emerge. “Obcecado pelo impossível, envenenado pelo desprezo e pelo horror”, como afirmou Camus, Calígula tenta perverter todos os valores, praticar uma liberdade inadequada. Mergulhado neste mundo de dor e sofrimento, Calígula quer que todos também sofram. Como primeira medida para aliviar tal dor, ele ordena que seu escravo Helicon (interpretado pelo ator Marco Antonio Pamio) lhe traga a lua: “Queria a lua. É uma das coisas que me faltam. Mas não me foi possível. Por isso estou cansado.”





Uma das marcas registradas deste projeto de leitura é o cuidado e esmero aplicados por Jorge Luiz Alves e Mika Lins na cenografia, figurino e adereços. Jorge Luiz Alves cria uma lua majestosa com tampa de caixa de água que ficou pendurada à esquerda do palco durante toda a encenação. A lua é um personagem importante nesta peça, representando o impossível, o inatingível. Calígula quer a imortalidade, na peça, representada pela lua, mas não consegue obtê-la.


Então, insatisfeito e ainda sofrendo, ele toma uma segunda medida: ordena que os patrícios ricos deserdem os filhos e doem sua herança ao Estado. Em seguida, pelo menos um filho de cada família abastada do Império será assassinado, conforme necessário.  


Alguns diretores preferem a leitura tradicional com os atores sentados lendo texto e rubricas. Nos últimos anos, temos visto um aumento significativo daquilo que chamamos de “leitura encenada”. O elenco, com o texto na mão, faz as movimentações que a direção determinar. Este tipo de leitura sempre traz o inconveniente de o ator estar inseguro com o texto e ainda ter que se movimentar pelo espaço. Contudo, o diretor Eric Lenate teve a ótima ideia de distribuir estantes pelo palco onde os textos ficariam apoiados. Assim, o elenco pode ficar com as mãos e o corpo totalmente livres para ler e se movimentar como bem quiser. Esta escolha criou uma movimentação dinâmica na leitura.


O palco foi coberto por uma lona branca e, no momento em que a rubrica diz “Calígula atira-se ao gongo e começa a martelar ininterruptamente”, o Calígula de Lee Taylor começa a bater com uma baqueta no fundo de um enorme tambor cheio de “sangue”, dizendo: “Façam entrar os réus, necessito de réus. Todos são culpados. Mandem vir os condenados à morte. Público. Preciso do meu público”. O “sangue” do fundo do tambor começa a espirrar nos textos, nos atores, nas batas brancas, marcando o início do banho de sangue. Naquele momento, objetos de cena, estantes e palco manchados de “sangue” representavam o mesmo caos que ocorria no Império de Calígula. E era apenas o começo.


Eric Lenate. Crédito: Mathilde Missioneiro


Eric Lenate também decidiu permanecer no palco vestido todo de preto durante a leitura como uma espécie de maestro, fazendo o que fosse necessário para conduzir a encenação, virando páginas de textos, instruindo elenco e músicos durante a leitura, o que aumentava o dinamismo e ao mesmo tempo criava uma sensação de “Que ser é esse?”, “Quem manda realmente neste lugar?”, “Quem realmente controla isso tudo?”.


Ainda sem conseguir a lua e aplacar sua dor, Calígula ordena que se construa um bordel onde as esposas dos homens mais importantes da cidade trabalharão como prostitutas. Isso revolta os patrícios (representados por Augusto Cesar, Claudinei Brandão, Rubens Caribé e Tiago Leal) que, por sua vez, tramam seu assassinato. Segundo Camus, “Calígula é a história do suicida superior que faz de tudo para armar aqueles que finalmente o matarão”.


Na condição de imperador frustrado, o que Calígula faz? Ele faz o que temos visto com frequência à nossa volta com pessoas que insistem em não aceitar a realidade – ele tenta subverter o mundo aos seus desejos, ajustar a vida para que se encaixe na sua vontade de aplacar a dor.


A peça apresenta o jovem poeta Scipião (interpretado pelo ator Diego Machado) que trata de maneira diferente o impossível da vida. Na condição de poeta, Scipião traduz sensações e pensamentos em palavras, conduz a vida e morte de seus personagens a seu bel prazer ou necessidade. Neste ponto, o poeta acaba sendo mais feliz. Só podemos ter a lua de forma poética. Aos poetas é dado o privilégio de experimentar a imortalidade por meio da arte, da literatura, dos deuses que inventam. Mas a Calígula, não. Em seu desespero, ele prova do absurdo da vida e faz as outras pessoas provarem deste absurdo. Calígula se recusa a aceitar o destino humano da morte.


O Calígula de Camus questiona certezas. Seria ótimo se pudéssemos fazer uma análise rasa do personagem como devasso, tirano, sofrendo de amor. Bastaria apenas defini-lo como psicopata e eliminá-lo para restabelecer a ordem. Contudo, Calígula não se encaixa nessas classificações. Como o velho Kerea diz: “Imperadores loucos já os tivemos. Mas este não chega bem a ser louco. O que eu detesto nele é que sabe o que quer”. Os próprios personagens da peça inicialmente veem Calígula de forma equivocada como bem aponta Kerea: “Vocês não reconheceram ainda vosso inimigo e atribuem-lhe motivos mesquinhos. Os motivos dele são elevados. Aprendam a vê-lo tal como é para melhor o combater”. 


O Calígula de Camus é sedutor e portador de uma verdade íntima. Ele quer ser o único homem livre daquele império, romper com as regras, a moral, quer “misturar céu e terra, confundir beleza com feiura, fazer com que o riso nasça do sofrimento”. Ele decidiu mudar o bem e o mal. O velho Kerea afirma: “Não é a primeira vez que um homem dispõe de um poder sem limites, mas é a primeira vez que se serve dele ilimitadamente a ponto de negar o homem e o mundo”. E é isso que apavora os opositores de Calígula. Eles não suportam que o imperador abale os alicerces da sociedade, que coloque em risco a “família tradicional”, acabe com as ilusões e faça o impossível reinar na terra. Mas a busca pela liberdade, a quebra de paradigmas, a incerteza assustam. E esses homens assustados querem o retorno da razão, da ordem, querem retornar às suas zonas de conforto onde imaginam ter poder, conforme diz Kerea: “Mas ver esfumar-se o sentido da vida, desaparecer nossa razão de existir, isso é que é incompreensível. Não se pode viver sem uma razão”. Razão de quem? Qual sentido da vida? Então, eles decidem agir.


Eric Lenate convidou o baterista L.P. Daniel para fazer “interferências atmosféricas” com sua bateria ao vivo, acompanhado de sua trilha melódica operada por Rodrigo Florentino. Uma interferência ruidosa e violenta representava “o estado interior atormentado do Calígula”.


Lavínia Pannunzio e Lee Taylor. Crédito: Mathilde Missioneiro


Pouco antes de ser assassinado, Calígula diz que “amar uma pessoa é estar disposto a envelhecer com ela”, e ele próprio não se vê capaz deste amor. Ele diz para Cesônia (interpretada pela atriz Lavínia Pannunzio): “Tenho vinte e nove anos. É pouco. Mas nesta hora em que a vida, no entanto, me parece tão longa e tão carregada de despojos, tão consumada, enfim, tu permaneces a última testemunha. Não seria melhor que a última testemunha desaparecesse?” Ele não poupa a vida nem da pessoa que se manteve ao seu lado o tempo todo. Calígula não suporta o mundo em que vive. Ele precisa “da lua ou da felicidade ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja loucura talvez, que não pertença a este mundo”.


Ao fracassar, Calígula comete mais este assassinato para obter a liberdade que tanto almejou – a solidão eterna – e se perde completamente. Para Calígula, a felicidade é um “intolerável sentimento de libertação, desprezo universal, um isolamento sem igual, a alegria desmedida do assassino impune, a lógica implacável que esmaga vidas humanas”. E, por fim, Calígula é apunhalado por Kerea e depois por todos os patrícios, sendo então eliminada a ameaça à ordem instaurada. Os patrícios representam o que Jânio Quadros chamava de “forças terríveis”. São aqueles indivíduos que tramam golpes de Estado nos corredores dos palácios, que colocam e retiram do poder quem eles querem, quando bem querem, fazem intrigas para satisfazer suas ambições pessoais e sempre escapam impunes.


Mas Calígula está mais vivo do que nunca. E não podemos eliminá-lo com punhaladas ou excluí-lo da rede social. O que fazer? Devemos nos conformar e nos calar diante dos absurdos? Ou devemos nos tornar loucos assassinos? Devemos nos tornar indiferentes ao desejo do impossível? Vivemos numa época de incertezas sufocadas por opiniões e “achismos” que não se sustentam, de liquefação dos dogmas religiosos, econômicos e das morais tradicionais. As pessoas experimentam uma liberdade sem precedentes, mas ao mesmo tempo sentem-se aprisionadas, com medo.


O palco do Sesc Anchieta na noite de terça-feira, 26 de novembro, com uma lona branca coberta de “sangue”, tornou-se o mundo onde vimos o imaturo e frustrado Calígula, possuidor de uma liberdade sem limites, se transformar num déspota suicida, vimos patrícios reagindo à mudança de significado de suas crenças e valores, se atrapalhando em empecilhos, se sentindo aprisionados, tentando se encontrar, e tramando eliminar o causador de todo esse caos, ao som nervoso e inquietante de uma trilha sonora executada ao vivo.



*Augusto Cesar é ator e tradutor. É mestrando em Estudos da Tradução na Universidade de São Paulo.