WHY THEATRE?



Volto a tratar do engajamento político por meio do teatro, incluindo o teatro chamado clássico, e a dimensão global que se busca alcançar no período de pandemia da Covid-19 e do consequente e necessário isolamento social (lockdown). Depois de ter abordado a mobilização do Theater of War Productions, há algum tempo ensaio e não arranjo tempo para tratar do International Institute of Political Murder (IIPM), mais especificamente, das iniciativas do seu mentor, o dramaturgo suíço de língua alemã Milo Rau, diretor artístico do teatro NTGent, situado na cidade belga de Gent. Quem frequenta a MITsp, Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, sabe quem ele é. Já escrevi sobre apresentações que ele realizou por aqui como artista em foco na edição 2019. Escrevi sobre o projeto de adaptação da Oresteia feita pelo NTGent e intitulada Orestes in Mosul (mas não assisti). Ele também desenvolve um projeto para 2021 sobre Antígone na Amazônia.


Agora, então, tive de arranjar tempo antes que ficasse tarde demais. É que foi lançado em setembro um livro do qual interessa falar. Editada por Milo Rau e duas colaboradores dele no NTGent (Kaatje de Geest, assistente de direção artística, e Carmen Hornbostel, dramaturgista), a obra reúne as respostas de 106 encenadores, artistas, intelectuais e coletivos teatrais à pergunta “Why theatre?”. Este é o mais recente, o volume 5, da coleção Golden Books, que sai pela casa editorial alemã Verbrecher Verlag, de Berlim, em parceria com o NTGent, em que Orestes in Mosul (2019) e The Art of Resistance on theatre, activism and solidarity (2020) são, respectivamente, os volumes 3  e 4.


Como relatam os coeditores num encontro organizado pela City University of New York em 16 de outubro, foi no regresso para a Bélgica do Brasil, onde Milo e Carmen estavam envolvidos com a produção de Antígone na Amazônia, logo que foi anunciado o lockdown na Europa, em março deste ano, que a ideia surgiu. A lista de convidados a escrever relatos ou cartas ou poemas ou qualquer gênero de reação à provocação contou também com curadoria para que pudesse ter mais ampla representação para além de nomes famosos como o de Ariane Mnouchkine, do Théâtre du Soleil, na França. Os autores dos breves textos estão listados em ordem alfabética e, felizmente, as colaborações têm início com o dramaturgo e dramaturgista sírio Mohammad Al Attar, que comenta o empoderamento outorgado pela encenação de Antigone of Shatila (2016) com mulheres sírias vivendo num campo de refugiados no Líbano. Segue um trecho do texto:


(Crédito: Dalia Khamissy)


A Constant Journey of Doubt and Experimentations (Mohammad Al Attar - Síria)

In Beirut, while working on the play Antigone with some Syrian refugee  women who lived with their families in squalid camps in the Lebanese capital, once again I struggled to answer the same question posed by the  women: “Of what use is theatre today when we lack basic life necessities?”  I decided to set aside the arguments I had prepared in advance and invited them to discover the answer together. And, so we did. During three months of working together, we discovered many answers—in their challenging of male authority, their reclamation of the narrative of the Syrian crisis, their growing confidence in themselves, their voices, and their bodies, and their grappling with the racism they had faced in a society dominated by a rigid, hierarchal class system. At the end of one performance,  Wafaa, one of the performers, came up to me and, pointing at a group of elegantly-dressed women standing outside the theatre, said: “they used  to see me only as another cleaner for their homes, but now they lavish me  with praise for my stage presence.”


A obra de Al Attar fica na fronteira entre a ficção e o documental (trailer) como são as peças de Milo Rau, que faz uma colaboração no livro, da qual trago um extrato: 


Theatre is a place of truth (Milo Rau – Bélgica)

Perhaps theatre is an exercise for our time: one has to come to terms with what little we have. We are human beings, we do not lack anything.  We have bodies, a few languages, social norms, a sometimes violent and sometimes promising history. We have each other, but we also have the long paths that every word - especially a “no”, a “that can no longer be done”, i.e. the revolt - sometimes has to take deep inside us. We have much, but also no abundance. The theatre says: “That must be enough”.  And I want to see that, in all its extension. A victory of humanity interests me more in the theatre than elsewhere: because it is subject to the rules of reality like no other. 


O livro traz vozes brasileiras como a de Douglas Estevam, ativista vinculado ao departamento cultural do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) que colabora com a dramaturgia de Antígone na Amazônia, e de Luanda Casella, performer que estrearia em outubro o espetáculo Killjoy Quiz no NTGent, reprogramado para abril de 2021 diante do novo lockdown adotado na Europa. Duas renomadas encenadoras brasileiras, Christiane Jatahy e Cibele Forjaz, também comparecem no livro. Aqui, um excerto da colaboração desta última: 


Sustaining the sky (Cibele Forjaz - Brasil)

At this intolerable historical moment, a collective art of presence is more important than ever, because it has got the power of transformation and of proving that everything can be transformed. Thus, I do no longer invoke theatre here but the theatricality of our human and extra-human existences to reflect if there is any possibility of a great transformation of the world, away from the capitalist system that devours the planet at an absolutely unsustainable speed. It is in ‘be-coming another’, no longer as a representation but in a transfiguration of our own bodies, to be a collective body. 


Duas manifestações das mais contundentes na coletânea são de artistas ativistas que já foram vítimas da opressão política em seus respectivos países: a cubana Tania Bruguera e o congolês Marc-Antoine Vumilia. Um ótimo documentário da TV Al Jazeera sobre Vumilia, com legendas em inglês, pode ser visto aqui. A leitura desses excertos é indispensável:



Art is not about producing, it’s about implementing (Tania Bruguera – Cuba)

I think what we can do as political artists is not only to create public reflection but also platforms where other people can stand upon. It’s not about producing art, it’s about implementing it. The useful art goes beyond complaining about social problems and instead tries to change them by implementing different solutions. It’s not about imagining impossible utopian situations, but building practical utopia.


The fifth wall (Marc-Antoine Vumilia – Congo):

Western theatre, in particular, has often given a narcissistic image of itself, with aesthetic and theoretical approaches that have only themselves as their goal. And we were surprised that the theatres were emptying! This sociological field has shielded itself so much against the heterodox rebellions coming from subcultures, from the periphery of the empire, and from what Homi Bhabha calls the interstices of society, that it asphyxiated itself together with them. This tribe has practiced incest for so long that it became a little more sterile every day. It was about time! This is why a paradigm shift is needed to better take into account the existence of the spectators with all the seriousness that this requires. I call for the era of theatre of the audience, the era of the people, so that, in addition to being the physical and temporal space of liminality of our revolutions, our subversions, and our joyful transgressions, the theatre may once again and fully be that of the communion in the flesh and blood of the people. There is a fifth glass wall between the stage and society waiting to be torn down.


A coleção Golden Books é apresentada como uma série que aborda a teoria e a prática do “teatro engajado do futuro”, o que reflete a prática profissional e a formação cultural de Milo Rau, que estudou Ciências Sociais e Letras em Paris com Pierre Bourdieu (1930-2002) e Tzvetan Todorov (1939-2017). Ao ser nomeado diretor artístico do NTGent, em 2018, divulgou um manifesto, cuja primeira regra estabelece que o teatro “não é mais apenas sobre retratar o mundo, mas mudá-lo. O objetivo não é descrever o real, mas tornar a própria representação real”. Milo costuma citar o filósofo marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), como quando argumenta que o “pessimismo do intelecto precisa ser equilibrado com o otimismo da vontade” (motto que o próprio Gramsci atribuiu, em 1920, ao francês Romain Rolland), querendo justificar como suas peças são, por vezes, cheias de melancolia burguesa ao mesmo tempo em que propugna o teatro ativista: “Acho que só fazer propaganda e escândalo e rodar por aí e fazer ativismo, isso, para mim, não serviria”.


Reunindo ensaios, textos dramatúrgicos e entrevistas com o objetivo de apresentar projetos recentes que revelam engajamento contra o imperialismo e solidariedade para com os que não são ouvidos, o volume 4 da coleção Golden Book traz uma parte destinada a projetos vinculados ao Brasil: “Disobedience and Solidarity – Focus Brazil”. A proposta de fundo é usar “palavras como espadas” (words as swords): “Não devemos subestimar o poder da performatividade: falar é um ato social e a linguagem não só descreve, mas também cria o mundo”.



Milo Rau criou uma Trilogia dos Mitos Antigos, que se completa em 2021 com Antígone na Amazônia, cuja estreia prevista para abril parece ter sido postergada para junho, de acordo com a nova programação do NTGent na internet, certamente em decorrência do novo fechamento do teatro em função da pandemia e reacomodação da agenda. A pedido dos ativistas do MST, tudo indica, essa Antígone não se mata: “Heróis, ativistas marxistas não se suicidam. Essa é a grande diferença entre os marxistas e os heróis gregos”, disse o dramaturgo recentemente. 


A trilogia se completa com a peça Orestes in Mosul, antiga capital do Estado Islâmico, no Iraque, e o filme documentário The New Gospel (2019), em que Jesus Cristo é o ativista negro camaronês Yvan Sagnet, que defende os direitos de trabalhadores agrários ilegais na Itália, muitos deles refugiados africanos, em plantações de tomates vizinhas à cidade de Matera, no sul do país, onde Pier Paolo Pasolini (1964) e Mel Gibson (2004) filmaram a paixão de Cristo. Esse foi também o cenário escolhido por Milo Rau. O filme é a gravação da peça ao vivo e cenas de bastidores, segundo o material de divulgação. Eu ainda não consegui ver o filme. Aqui tem um trailer. E dá pra ver uma entrevista do diretor, em inglês, para Cineuropa. Na estreia do documentário no festival de Veneza, em setembro deste ano, Milo Rau celebrava os resultados do teatro engajado para os imigrantes, que conseguiram casas próprias e a criação de um selo de “fair trade” para produtores de tomates da região que cumpram as leis trabalhistas.


Este ano também foi lançado o documentário Orestes in Mosul – The Making of, mas só o trailer está disponível na web.


No livro Orestes in Mosul, da coleção Golden Books, há toda uma discussão sobre adaptar os clássicos para os dias atuais passando pelo conhecimento de experiência, como diz Milo Rau: “Com a Oresteia, notamos de novo como seria absurdo produzir o texto sem a experiência, por exemplo, dos atores iraquianos – porque o que nós, de verdade, sabemos sobre vingança, sobre guerra, sobre sofrimento e sobre ódio?” Há ainda muitas informações sobre os bastidores da montagem e textos de autoria dos artistas. Um bom resumo do que se passou por lá se lê neste valioso artigo do NYT.


Renata Cazarini


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