Grada Kilomba, griot dos mitos gregos



ILLUSIONS VOL.I NARCISSUS AND ECHO (2017)

ILLUSIONS VOL.II OEDIPUS (2018)

ILLUSIONS VOL.III ANTIGONE (2019)

Dramaturgia, direção e edição: Grada Kilomba


As videoinstalações da artista portuguesa Grada Kilomba, residente na Alemanha, retomam os famosos mitos gregos, recontados criticamente por uma griot, figura da tradição centro-africana cuja atribuição é preservar oralmente a memória. As instalações consistem em um telão, no qual são exibidos os vídeos das encenações, e um monitor posicionado lateralmente na vertical, no qual se vê a própria artista como narradora do mito. Mas não se trata apenas de contação de histórias filmada. O projeto World of Illusions, em três volumes, é de engajamento crítico com a tradição, propondo uma releitura dos mitos a partir do olhar feminista descolonial (ou decolonial). Vale lembrar que Grada Kilomba, nascida e criada em Lisboa, é autora de Plantation Memories (Verlag, 2008), livro publicado no Brasil como Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (Cobogó, 2019), uma coleção de entrevistas sobre experiências sutis de racismo vividas por mulheres negras, formando uma compilação de histórias psicanalíticas, segundo a autora.



Como tem sido frequente neste período de atividades remotas decorrentes do necessário isolamento social por causa da pandemia de Covid-19, as obras de Grada Kilomba estarão temporariamente disponíveis na web. A importante revista de artes ArtReview, que publicou em outubro uma grande reportagem com a artista, justamente quando a badalada Tate Gallery, de Londres, adquiria as videoinstalações Narcissus and Echo e Oedipus, oferece agora acesso às três obras, de acordo com a seguinte agenda:


De 4 a 11 de novembro: Narcissus and Echo (30’38’’)

De 11 a 18 de novembro: Oedipus (45’38’’)

De 18 a 25 de novembro: Antigone (54’48’’)


A revista apresenta a contação de histórias (storytelling) de Grada Kilomba como uma prática única, que interrompe o “cubo branco” da galeria de arte e reencena os mitos gregos a partir da escrita, da performance, da coreografia, da psicanálise e do imaginário para explorar a violência e a opressão cíclicas: “Kilomba reformula nossa compreensão dos clássicos gregos, lendo as histórias de Narciso e Eco, de Édipo e de Antígona pela política da misrepresentation e da invisibilidade, da violência, da resistência e justiça”.


Eco e Narciso, print do vídeo


A escrita é a língua materna da artista, nas palavras dela: “Eu sempre começo todas as minhas obras a partir da escrita. Escrever é a minha primeira linguagem e, então, eu fico muito interessada em transformar a escrita em performance, tornando-a visível e com movimento e sonora”.


Pode surpreender que a artista portuguesa prefira se expressar em inglês, mas ela justifica que a nossa língua ainda não passou por uma revisão que extirpe seu caráter colonizador e opressor, em que o gênero masculino prevalece com frequência. Perplexa com o argumento (brasileiro) de que a língua portuguesa é a mais bela do mundo, Grada Kilomba questiona: Como é possível ser tão obediente à colonização? Ela apresenta seus argumentos numa conversa com a performer brasileira Jota Mombaça, vídeo que integra a exposição FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil-Portugal, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, até 30 de janeiro. É preciso agendar visita. Uma edição virtual da exposição pode ser vista aqui. Se interessar ver o catálogo, é só baixar.


Para além da entrevista, não há propriamente uma obra de Grada Kilomba na exposição, mas um curta da performer Ana Pi, What are we talking about? (2016), resgata um trecho do livro Plantation Memories (em inglês), numa contundente denúncia da opressão supremacista. O Educativo do Sesc Pompeia comenta que Ana Pi “chama a atenção para certos lugares de fala condicionados, evocando um texto de Grada Kilomba sobre descolonização dos corpos, descolonização do conhecimento”. Dá para ver a performance neste link.



Grada Kilomba como Tirésias em Antígona


O Brasil tem sido acolhedor com a obra da artista portuguesa, que esteve na Bienal de Arte de São Paulo de 2016, por exemplo, bem como, em 2019, na Pinacoteca paulista, realizou sua primeira exposição individual no país, intitulada Grada Kilomba: desobediências poéticas. As videoinstalações adquiridas pela Tate Gallery estiveram em São Paulo. No catálogo, que pode ser baixado aqui, o diretor-geral da Pinacoteca, Jochen Volz, diz: “Kilomba demonstra como o sistema dominante da produção de conhecimento determina quais perguntas merecem ser feitas, como analisá-las, sob qual perspectiva e como explicá-las”. O catálogo traz também um ensaio de Djamila Ribeiro sobre a obra de Grada Kilomba.


Mas o que mais me interessou na publicação foi a edição datilografada da dramaturgia, em português e em inglês, de Narcissus and Echo, com suas rasuras e anotações como se pode ver na imagem abaixo. 




A anotação manuscrita pela artista sobre a triangulação falar-silenciar-ouvir foi abordada por ela mesma em recente conversa (30/10/2020) organizada pela Goodman Gallery. Grada Kilomba justificava a ousadia de realizar videoinstalações que superam os 30 minutos, que cobram atenção prolongada da audiência: “É uma obra que pede paciência. Para mim, importa criar uma obra em que se exercite a habilidade da escuta. Essa habilidade de deixar o artista falar e narrar uma história e escolher silenciar ou ouvir. Então, essa triangulação falar-silenciar-ouvir é um desafio ao público de entrar, participar da obra e aprender a ouvir”.


Elenco de Narcissus and Echo



NARCISSUS AND ECHO

Dramaturgia, direção e edição: Grada Kilomba

Elenco: Martha Fessehatzon (Eco), Moses Leo (Narciso), Zé de Paiva (o amor de Narciso), Grada Kilomba (Griot e 2ª ninfa)

Diretor de fotografia: Zé de Paiva

Figurino: Moses Leo

Trilha e música original: Neo Muyanga


Comentário

A dramaturgia é organizada em duas partes. As sete cenas iniciais compõem a narrativa mitológica em que o jovem e belíssimo Narciso se apaixona cegamente pelo seu reflexo no lago, menosprezando a ninfa Eco, já condenada pela deusa Hera a reproduzir apenas as últimas palavras ouvidas. No lugar onde falece Narciso nasce a flor de mesmo nome. O destino da ninfa é ser eco. Trata-se de mitologia etiológica. Grada Kilomba relê o tão conhecido mito como a fascinação do patriarcado branco consigo mesmo e o endosso recebido pela voz daquele que não sabe ou não quer saber. Esse engajamento político do mito fica claro nas sete cenas finais, em que a Griot assume seu papel crítico de rever a tradição ou de revelar a história verdadeira. 


Cena VIII

Narcissistic,

Narcissistic is this

white patriarchal society

in which we all live,

that is fixated in itself

and in the reproduction of

its own image,

making all the others

invisible.


Cena XII

Echo is the white consensus.

She is the one who repeats

and confirms the

words of Narcissus. 

She follows him silently,

and each moment

of her silence

supports Narcissus’

sentences.



OEDIPUS

Este vídeo não tive oportunidade de assistir ainda. O post será atualizado. Mas se pode dizer que Grada Kilomba abordou o mito de Édipo como metáfora das políticas patriarcais e coloniais de violência, rivalidade e genocídio contra corpos negros e marginalizados.



Coro em Antígona, print do vídeo



ANTIGONE

Dramaturgia, direção e edição: Grada Kilomba

Elenco: Sarah-Hiruth Zewde (Creonte), Zula Lemes (Ismene), Martha Fessehatzon (Antígona), Moses Leo (Polinices), Zé de Paiva (Etéocles), Isabelle Redfern (guarda), Amanda Mukasonga (Hemon), Grada Kilomba (Griot e Tirésias) e o Coro, composto das seis atrizes.

Diretor de fotografia: Zé de Paiva

Figurino e cenografia: Grada Kilomba e Moses Leo

Trilha e música original: Neo Muyanga

Vídeo disponível temporariamente aqui.


Comentário

Este vídeo é abertamente antirracista, interseccional, decolonial. Atrizes predominam no elenco negro, representando os personagens masculinos Creonte, Hemon, Tirésias, o guarda. Grada Kilomba é explícita sobre o empoderamento das performers, atribuindo-lhes papéis dignos no palco para “reescrever a história, definir a sua história, assumir sua voz, tornando-se autoras e autoridades de sua própria história”. A artista portuguesa, uma ativista, como fica claro, sustenta que é preciso narrar toda a história de novo, incorporando personagens relegados à invisibilidade. Só um sepultamento digno dos fatos pode levar ao fim da violência decorrente da opressão patriarcal branca. Alguns trechos do texto, traduzidos do inglês por mim, dos 15 minutos finais do vídeo:


FEMINISMO INTERSECCIONAL

Embora Antígona seja a história de uma mulher e tenha uma narrativa feminista, devemos lembrar que até agora nem todas as mulheres foram incluídas nesse discurso ou tiveram suas histórias contadas. A narrativa feminista conceituou as mulheres como um grupo oprimido de gênero coletivo em uma sociedade patriarcal, uma irmandade, uma cumplicidade universal entre as mulheres. Essa ideia é poderosa, mas também pode ser problemática se usada para simplificar e dividir o mundo apenas em homens e mulheres, porque não explica a história. Negligencia as relações coloniais entre eles e a história da escravidão, colonialismo, genocídio e racismo, que são tão centrais para todas as mulheres de cor. Colocar o gênero como foco primário e único da teoria feminista relega as mulheres negras à invisibilidade e constrói a noção de mulher como branca e a brancura como universal. É por isso que é tão importante recontar Antígona de uma perspectiva feminista negra.


DECOLONIALISMO

Mas, de novo, e se ainda vivermos com os fantasmas e horrores do passado precisamente porque a história não foi contada adequadamente? E se o passado e sua história continuarem nos assombrando precisamente porque não foram devidamente enterrados? E se os fantasmas do passado forem espíritos que estão fadados a vagar porque suas histórias não tiveram um enterro digno? Recontar a história do zero e adequadamente é uma cerimônia necessária, um ato político, caso contrário, a história se torna assombrada, assombrada e repetida. Ela se repete, retorna de forma intrusiva, enquanto conhecimento fragmentado, interrompe e agride nossa presença. Portanto, não deve ser uma surpresa observar o aumento da violência se considerarmos que 500 anos de história colonial nunca foram contados adequadamente. Ainda é vista como uma coisa do passado que não merece ser contada no presente. Isso retorna como um fantasma que insiste em assombrar o presente.



ANTIRRACISMO

Então, se a história não foi contada adequadamente e se apenas alguns de seus personagens foram revelados como parte da narrativa, talvez tenhamos uma história assombrada. Uma história que precisa ser contada do zero e enterrada adequadamente. Um enterro adequado. Um enterro digno que nos permita produzir memória que nos habilite a agir no presente destemidos, ousados, firmes, livres e orgulhosos de sermos pretos.



Legenda: Creonte e o guarda, print do vídeo


Do ponto de vista estético, Antigone é um balé realizado num cenário infinito em que a magnitude da cenografia se sustenta no trono de Creonte e na dimensão dos tecidos. A paleta de cores é limitada ao branco, preto e vermelho, economia de meios que flerta, parece, com o afrofuturismo. 


(Renata Cazarini)



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