LEITURA DE FÉRIAS 2 (ou “Atenas acima de tudo?!”)


LÍCIDAS
De Leonardo Antunes
Editora Zouk
2019

Os mil versos dramáticos metrificados dão um soco no estômago e fazem dizer em voz alta: “Atenas acima de tudo”?! Tudo ali ecoa o Brasil de hoje. E é assustador. Quantos serão os sacrifícios? Quem serão as vítimas ofertadas em sacrifício?

Canta o Coro no segundo estásimo (versos 507 a 520):

Com pedras, nós iremos erguer novos templos!
Um santuário de Ares guerreiro,
com argamassa de carne e de sangue!
Aos traidores, a morte!
Aos inimigos, a morte!
Despencarão ao Hades, esquecidos,
numa torrente de carne e de sangue!

Aprontem-se armaduras, espadas e lanças!
Com elas, nós saudaremos os persas,
numa colheita de sangue inimigo!
Aos traidores, a morte!
Aos inimigos, a morte!
Plantaremos seus corpos pelos campos
para a colheita de sangue inimigo!

Esse coro de cidadãos e cidadãs, em Salamina, sai para matar. É impiedoso.

Leonardo Antunes (sentado) em visita à UFF em 2018

O autor, professor de grego na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), poeta, tradutor e musicista, toma o quinto parágrafo do livro IX das “Histórias” de Heródoto e faz dele um poema dramático nos moldes clássicos com elocução atual. Sem dispensar a oportunidade de colocar seu público potencial em contato com conceitos como ostracismo, tirania, miasma, barbarismo, retoricismo. Sem escapar aos deuses sempiternos, ínferos, súperos, numes protetores, Atena, Ares, Apolo, Ártemis, Zeus, claro.

Heródoto (século V a.C.) relata como o comandante persa Mardônio chega para ocupar uma Atenas esvaziada, com a maior parte da população em Salamina e parte na frota bélica. Envia, então, um mensageiro, Miríquidas com uma oferta de paz, quando Lícidas, ateniense membro do Conselho, sugere levar o tema à Assembleia popular. Suspeito de traição, é apedrejado até a morte. Dá-se o mesmo com sua esposa e um casal de filhos. Neste caso, o Coro é o agente.

No terceiro estásimo, ele canta (trecho dos versos 681 a 692):

Sangrentas são as mãos do justiceiro.
Porém, seu coração é como um rio
translúcido, pacífico, fluente!
Erínias não conheço,
nem Queres vingativas.
Meus feitos são justiça manifesta!

Não temo mal nenhum no meu caminho.
Que venham persas, medos, babilônios!
Atenas permanece sempre unida!
O fármaco vertido
no chão de Salamina
que seja aceito como libação!

Dá medo. Quem tem a justiça em suas mãos? Os homens belos e bons (v. 657), que resvalam o tempo todo no barbarismo (v. 315, 326, 652). A contundente ironia de Leonardo Antunes faz ver por trás das palavras bem colocadas, como na fala do Corifeu, ancião assassinado logo em seguida - em cena, não nos bastidores - pelo conselheiro Heterócrates. Em decassílabos, o Corifeu alude à morte de Lícidas (versos 618 a 621):

Que bom que conseguimos evitar
A desinteligência, conselheiros.
Do contrário, talvez agora mesmo
Alguém já tivesse perdido a vida.

Não é o Coro, mas Heterócrates que profere os versos finais da peça. Numa entrevista, no lançamento do livro, em novembro do ano passado, em Porto Alegre, o autor explica que Heterócrates é a voz do autoritarismo populista. Leia aqui.

Seria interessante ver a peça montada, mesmo que em âmbito acadêmico. É um texto clássico, por assim dizer, forjado na força da palavra poética, mas que deixa amplo espaço para a dramaturgia cênica.