BABEL ou a
necessidade de violência: uma história arcana da revolução dos tradutores de
Oxford (resenha tardia)
de Rebecca.
F. Kuang
Tradução de
Marina Vargas
Editora Intrínseca
Lançamento:
12 fev. 2024
Em inglês:
2022
Vencedor dos prêmios
Nebula e Locus, Babel ou a necessidade de violência aborda
temas como revoluções estudantis, resistência colonial e o uso da linguagem e
da tradução como ferramenta de dominação. Unindo fantasia e ficção histórica em
uma narrativa visceral e sombria, Kuang revisita e reescreve a Revolução Industrial
na Inglaterra e a história colonial da China na década de 1830. (divulgação)
Pensando e agindo – a
universidade pode muito
Por Renata Cazarini
O momento de ler essas
quase 600 páginas é agora mesmo. No Norte Global, o cenário não poderia ser
mais demandante quanto à consciência da força política dos corpos docente e
discente dentro da universidade. O que a administração DonaldO-Trump2 se
empenha em desmontar – a liberdade de expressão nos campi, a autonomia
da gestão acadêmica – enfrenta resistência, como também resistem as jovens personagens
da obra de Rebecca F. Kuang à opressão da Inglaterra colonialista do século XIX.
Um pequeno grupo de graduandos e professores de tradução se rebela em Oxford e
ocupa a torre de Babel na tentativa de evitar a agressão britânica à China, nos
momentos que antecedem a primeira guerra do ópio (1839-1942), que teve,
entre outras consequências, a cessão de Hong Kong aos ingleses. A ex-colônia
foi devolvida à China em 1997.
Nos Estados Unidos, em
1873, era fundado o jornal discente da Universidade de Harvard, The Harvard Crimson, uma vitrine para as atuais vulnerabilidades políticas graves, como as restrições
a reuniões, no campus, de organizações de grupos de interesse não
acadêmicos vistos por alguns como radicais, tal qual o ocorrido com a African and African
American Resistance Organization (AFRO) no final de março.
Até mesmo um acadêmico com
uma visão conservadora, como parece ser o caso do professor de Ciências da
Computação Boaz Barak, acaba por admitir ao final do seu artigo de opinião que
os tempos são difíceis:
These are difficult times for academia. The Trump administration’s
actions show little care for academic freedom or scientific progress. But I
believe that if we make a positive case to the American people, and demonstrate
our focus on our educational and research mission, we will ultimately prevail. (28 mar. 2025)
Boaz Barak is the Gordon McKay Professor of Computer Science.
Ele, no entanto, considera
que a função da universidade é apresentar resultados financeiros para a nação,
nada diferente do que fazem os docentes que comandam a torre de Babel na Oxford
de 1830. É interessante refletir como essa posição difere da que têm as
docentes Maya R. Jasanoff e Kirsten A. Weld, da área de História de Harvard,
que escreveram em defesa de uma ação judicial coletiva contra a campanha de “deportação
ideológica” promovida por DonaldO-Trump2:
In the past two weeks, we have watched in horror as scenes familiar from
our studies of history have played out on and around U.S. university campuses. […] Never in our lifetimes have universities, one of the foundations
of American democratic society, faced such an existential threat. […] Implicit
in the First Amendment is the right not just to speak, but to listen: to hear
and be informed by the views of others. We all suffer when our non-citizen
students and colleagues are forced to censor themselves and to withdraw from
discussion and debate. […] The repressive techniques being wielded
against non-citizen students and scholars threaten everybody invested in the
values of freedom of expression and due process at the heart of U.S.
constitutional democracy. Universities are currently on the front lines of a
battle for basic civil liberties. We must fight for the values — and the people
— that define us. This lawsuit is a start. (28 mar. 2025)
Kirsten A. Weld is a professor of History.
Assumindo
riscos e perigos no enfretamento do imperialismo e do supremacismo branco, é
assim também que os alunos estrangeiros protagonistas de Babel se
posicionam na Inglaterra da primeira revolução industrial. Na ficha
catalográfica, a obra aparece como ficção chinesa. Na wikipedia,
como ficção especulativa. Para fins comerciais, como obra de fantasia tipo dark
academia: “Trata-se de uma subcultura que idolatra o conhecimento acadêmico
e pode se manifestar em roupas, decoração e estilo de vida, especialmente para
o público entre 14 e 25 anos” (O Globo).
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Fonte: publicação Intrínseca |
Pode ser que
você, ao ler, pense, como eu, num Harry Potter mais sofisticado. O
núcleo duro da trama associa tradução e magia: barras de prata energizadas pela
gravação de pares de palavras semanticamente correlacionadas fazem funcionar
com mais eficiência uma Inglaterra que se industrializa e submete operários e
crianças a regimes de horas prolongadas e exaustivas de trabalho. Jovens são
formados no Real Instituto de Tradução da Universidade de Oxford, aprimorando
seus conhecimentos em línguas clássicas como sânscrito, grego antigo e latim, além
de idiomas modernos. No centro dos acontecimentos, está um menino arrancado da
sua terra natal, Cantão, atual Guangzhou, capital da província de Guangdong,
sul da China. O acesso precário de pesquisadores de Oxford a idiomas orientais
– o mandarim, o dialeto cantonês – tornava Robin Swift, nome inglês que adota
na sua formação europeia, o ativo mais precioso de Babel. A ambientação
universitária e o discurso recorrente sobre o impacto da linguagem acolhem
calorosamente a pessoa leitora interessada no tema da tradução, e ainda mais a
que trabalha com as línguas clássicas. Um breve excerto:
Os tradutores ajudaram.
Victoire, que vinha lendo avidamente a literatura dissidente francesa, compôs o
par de equivalentes élan-energy (ímpeto-energia); élan trazia
conotações de um zelo revolucionário particular dos franceses e remontava ao
latim lancea, que significa “lançar” (sic: lança). O par de equivalentes
criava uma associação com arremesso e impulso, e era essa distorção latente em
relação à palavra inglesa energy que ajudava os projéteis dos que lutavam atrás
das barricadas a voar mais longe, acertar com mais exatidão o alvo e causar
mais estrago do que os tijolos e pedras do calçamento deveriam ser capazes de
causar.
(trad. Marina Vargas, p. 551-2)
No blog
da Intrínseca, a tradutora Marina Vargas reflete sobre a tarefa de
traduzir uma obra sobre tradução escrita por uma autora-tradutora. Rebecca F. Kuang é doutoranda em Literatura e Línguas do Leste da Ásia na
Universidade de Yale, mestra em Filosofia na área de Estudos Chineses pela
Universidade de Cambridge e mestra em Estudos Chineses Contemporâneos pela
Universidade de Oxford, além de tradutora de mandarim. Ela nasceu em Guangzhou,
na China, e cresceu nos Estados Unidos. Kuang também é autora da trilogia A
Guerra da Papoula (2018-2020) e de Yellowface (2023). Em
agosto será lançado no mercado em língua inglesa seu novo livro, Katabasis.
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Rebecca F. Kuang |
Quanto pode a tradução?
O jovem personagem protagonista
de Babel é o disparador involuntário do confronto militar sino-britânico
quando, numa cena de sutil malícia intelectual e beleza emocional, Robin Swift
deixa temporariamente o papel de intérprete dos interesses ingleses e se rende
ao chamado da sua cultura de origem, revelando ao interlocutor chinês que a
negociação diplomática em andamento não é nada além de farsa. Um excerto:
Ele
se sentia ligeiramente tonto. A audiência tinha terminado de maneira tão
abrupta que ele não sabia o que pensar. Ficara tão concentrado na mecânica da
tradução, em transmitir com precisão o que o sr. Baylis dizia, palavra por
palavra, que não conseguira perceber a mudança no rumo da conversa. Sentia que
algo importante tinha acabado de acontecer, mas não tinha certeza do quê, nem
de qual era seu papel em tudo aquilo. Repassava sem parar a negociação em sua
cabeça, tentando identificar se havia cometido algum erro desastroso. Mas tudo
tinha sido bastante civilizado. Eles tinham apenas reiterado posições já bem
estabelecidas no papel, não tinham?
(trad. Marina Vargas, p. 346-7)
A subsequente destruição de um
enorme carregamento de ópio de comerciantes britânicos retido no porto de
Cantão pode levar ao ataque à China, agressão militar que estudantes de Babel
ligados a uma organização batizada com o nome do deus Hermes tentam evitar.
Fantasia e história se harmonizam, não sem doses de violência. O romance para
antes, mas a história registrou a guerra.
A autora não poupa quem a lê,
salpicando falas abertamente racistas e misóginas que caracterizam o convívio dos
alunos racializados e marginalizados com a elite intelectual de Oxford. Os
chineses são descritos pelas personagens mais preconceituosas como um povo
inferior. Meninas são discriminadas no acesso aos estudos e até se travestem de
rapazes para proteção. A cor da pele relega alguns à exclusão. O ambiente
acadêmico é sedutor, inebriante, mas o falso brilho não engana.
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