ANDAR COM FÉDRO EU VOU [COMENTÁRIO]


FÉDRO

Brasil

2021

Documentário

cor

88 min.

 

Direção: Marcelo Sebá

Roteiro: Marcelo Sebá

Elenco: José Celso Martinez Corrêa, Reynaldo Gianecchini

Fotografia: Daniel Lima

Montagem: Alessandro Danielli

Música: Pedro Bernardes, Ariel Donato 

Produtor: Marcelo Sebá

Produzido por Phaedrus


Exibição apenas em salas de cinema: 24, 25 e 26 out.2021


Samea Ghandour*


Interessante a proposta do filme de Marcelo Sebá de acentuar o nome do jovem protagonista do discurso platônico. Mais significativo o título assim, em bom português, com esperança soante em rebento e numa hora em que estamos tanto precisando de fé. A película foi rodada em 2019, quando ainda não sonhávamos com a pandemia, e estreou em 24.10.21 na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, num domingo friozinho, chuvoso, tipicamente paulistano. 


Todos de máscara, devidamente vacinados e verificados para entrar no cinema do Shopping Frei Caneca. Assentos tomados, talvez ninguém esperasse que o diretor e o próprio Reynaldo Gianecchini conversassem com o público previamente. Reynaldo contou o quanto esse encontro com José Celso Martinez Corrêa fora profundo e o quanto os ensinamentos do diretor do Teatro Oficina ainda ressoavam em seu trabalho e vida pessoal quase dois anos e meio mais tarde. (veja o vídeo ao fim do comentário)


No filme, Zé Celso performa Sócrates e Gianecchini, Fedro. Ao ser chamado de mestre, no entanto, Zé Celso pede a Gianecchini que não lhe tenha essa postura, que só impede a aprendizagem do que quer que seja. Gianecchini ficou vinte anos sem pisar no Teatro Oficina depois de ter partido para o mundo da televisão. Vinte anos sem ver Zé Celso, de quem se despedira ainda menino, no início da carreira, e para quem voltava, agora, homem, mas não menos menino... 

 

Talvez seja difícil mesmo para nós não enxergarmos nesse reencontro a relação mestre & aprendiz, não só porque Zé Celso se coloca de maneira A-M-O-R-O-S-A-M-E-N-T-E (com maiúsculas transbordantes) pedagógica para com Gianecchini, mas também porque o diálogo platônico parte dessa premissa entre um homem mais velho e um rapaz. 

 

“Pau-cu-cama, pau-cu-cama, pau-cu-cama” dão origem ao que antes não ouvíamos, “palco-cama”, lugar de máxima intimidade. Com essas palavras, Zé Celso convida Gianecchini a se deitar consigo e tem início o diálogo filosófico: “Amado Fédro! De onde vens? Pra onde vais?” / “Venho da casa de Lísias. Vim dar um passeio aqui fora das torres da capital. Dizem que faz bem pra saúde mental”.

 

Zé Celso adaptou com primor o texto original pois conseguiu transmitir de maneira agradável, acessível e generosa algo que sabemos ser tão complexo. Um grande desafio para todo tradutor de textos antigos. As falas, concisas em relação ao texto platônico, eram lidas pelos dois atores/dois duplos artaudianos e pareciam ser a única coisa efetivamente planejada, a espinha dorsal desse encontro, regado por conversas sobre a vida, repletas de respiração, brilho do olhar, fluidos, toque, bapho, “humor-amor”, nudez, phala, “comida e bebida”.

 

O Fedro original resvala em vários temas, sendo o principal deles o amor. Lá há três discursos sobre esse assunto. O primeiro é de Lísias, lido por Fedro a Sócrates, às margens do Ilisso, e contém a tese de que se deve favorecer mais ao não amante do que ao amante, uma vez que o primeiro estaria em seu perfeito juízo, enquanto o segundo estaria doente (231d) e, sentindo-se inseguro, faria de tudo para desestabilizar o amado, não sendo assim digno dele. Embora no texto platônico não fique clara a profundidade real da relação entre Lísias e Fedro, Zé Celso aproveita o ensejo para sugerir um possível envolvimento homoerótico entre ambos, com Fedro perdidamente apaixonado e fiel a Lísias, seu único amor, para quem voltaria mais tarde, ao chegar em casa.

 

“Fala, porra, fala. Voluntariamente ou à força!”. O segundo discurso, que no original é suscitado em Sócrates por Fedro, contém uma série de argumentos contra o amor. A isso, era de se esperar que Zé Celso não fizesse jus, ele que faz questão de nos lembrar do quanto toda criação é filha e fruto do amor, do quanto todas as suas peças de teatro e trabalho estiveram regadas por essa energia acalentadora, do quanto agora, ao contrário, estaríamos vivendo tempos sombrios, de falta de amor, de um governo que se recusa e que tem raiva de tudo aquilo que ama, do quanto é preciso se afirmar radicalmente neste momento. 

 

Nada menos nietzschiano: Amor fati. Amor ao destino, às coisas como elas se apresentam, enfrentamento da realidade da vida como ela é, como versou Nelson Rodrigues, como alertou Drummond “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem”, mas sem ressentimentos, “sem mágoas estamos aí”. 


“O cérebro é uma víscera. ‘Eu peido, logo eu existo’. É o corpo que existe”. A relação de Zé Celso com o corpo e com a nudez também parece fazer parte dessa proposta de enfrentamento amoroso da re-existência e, sobretudo, toca em dois pontos fundamentais de sua trajetória de vida: a tortura sofrida durante o Regime Militar e o assassinato brutal de seu irmão por um simpatizante de Ares, como ele mesmo diz. Esses dois eventos capitais o colocariam numa outra relação com o corpo, o fariam sentir a necessidade de tratar os corpos das outras pessoas e o seu mesmo com uma condescendência digna de deuses, algo semelhante ao que vamos aprender com Sócrates, guardadas as devidas proporções, mais adiante, sobre o amor. 


Zé Celso convida o público a gozar junto, a amar mais a si e aos outros, para além das amarras do capitalismo e dos valores liberais-burgueses, que nos fazem ver no Outro mero objeto de nossa (in)satisfação ou de nosso ódio e nos impedem de nos relacionarmos com o amor de maneira universal, arquetípica, reminiscente, transpessoal. E para isso é preciso o delírio, a nossa participação em Baco, o συνβaκχεύομεν, ou em alguma outra forma delirante daquelas presididas por deuses e mencionadas por Sócrates em Fedro


O terceiro e último discurso de Sócrates, no texto de Platão, é uma palinódia para com o Amor, desta vez, visto como algo bom. Amar seria louvável na medida em que, ao contemplar a beleza através dos olhos, esses porosos órgãos, os homens entrariam em contato com a verdade em si, outrora contemplada pela alma, quando em confluência com os deuses. E seria possível mesmo ao ser humano, domando o mau cavalo de sua própria alma e dando mais atenção ao cavalo bom e ao cocheiro, desfrutar do amor como um delírio divino capaz de proporcionar a felicidade suprema ao amante e ao amado (245c). 


Essa parece ser também a proposta de Zé Celso, que não se furta em contemplar a beleza de Gianecchini e dela se deixa embriagar. Ao mesmo tempo, ele não deixa de ver no garanhão o ser humano ansioso por uma existência melhor e mais amorosa. Bonita mesmo a cena em que ele convida Gianecchini a se libertar de suas amarras, como ator e ser humano, frisando a importância de nos contradizermos radicalmente, de transformarmos o tabu em totem, de nos permitirmos a intimidade com os outros e conosco mesmos, algo que pode parecer tão difícil num mundo em que, para sobreviver, temos de nos adaptar e podar continuamente.  


Mais do que um mero convite a uma entrega deliberada e irresponsável a forças sobrenaturais, Zé Celso parece preocupado em nos fazer perceber o quanto é possível melhorar a nossa qualidade de vida e a das pessoas ao nosso redor a partir do amor empenhado em fazer o Outro crescer, se conhecer, se realizar, se alegrar, podendo ou não haver desejo envolvido. Daí o gozo coletivo, que se afasta da mera pornografia, como ele mesmo explica, isto é, do vender e do usar o Outro, do descartá-lo, do vendê-lo e do comprá-lo, lugares onde não há espaço para o Amor. 


Tudo isso talvez ainda hoje soe muito avant-garde e nos suscite uma série de questionamentos, banhados que ainda estamos pela pia batismal cristã. Talvez, como disse Maiakovski, para o júbilo, o planeta ainda esteja imaturo e seja preciso arrancar alegria ao futuro. Talvez estejamos apenas arando o solo para que novas sementes possam florescer mais vivas e mais divinas, mas talvez também isso não nos impeça de, no meio do caminho, adubarmos a nós mesmos e descobrirmos o que signifique o amor para cada um de nós e como podemos nos beneficiar e aos outros a partir disso. O importante, afinal, é nos tornarmos quem somos, se possível, com amor & fé-dro. 



GIANECCHINI DIZ: 

Esse contato mais próximo com o Zé... O Zé Celso é a pessoa mais livre que eu conheço, mais sem amarras. E todo mundo fala “que louco, que louco...” É muito louco mesmo um cara tão livre, né? Então, é, não tem como a gente não ser afetado, não ser contagiado quando a gente tá dum lado desse. Então, eu fiquei muito feliz de ver o resultado do filme porque eu percebi o quanto de coisa já andou dentro de mim, desde esse encontro, como ficou reverberando tanta coisa que ajudou no meu lado de ser humano, no meu lado de artista. Então, é uma alegria compartilhar. Eu espero que vocês também sejam tocados em algum nível. Eu imagino que sim. E mais uma vez, brigado, cara, você fez um encontro tão legal pra gente falar, tem tanto afeto no filme, num tempo tão difícil que a gente tá vivendo. Eu acho uma joia! Brigado! Boa noite!



*
Samea Ghandour é doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo (USP). Sua área de concentração é a poesia dramática do Período Helenístico. Bacharela em Letras com habilitação em Grego e Português. Licenciada em Letras Português pela USP. Participa do grupo de pesquisa Estudos sobre Teatro Antigo (USP/CNPq) e do grupo de pesquisa Hellenistica (USP/CNPq). Em 2014, frequentou o curso de Iniciação ao Método do Ator, no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação, em São Paulo.

 

Sobre sua experiência com Antunes Filho, Samea escreveu este post para o blog na morte do encenador.

Comentários