OPINIÃO: EURÍPIDES DESPEDAÇADO


As bacantes como símbolo da nova guerra cultural brasileira

*Por Adriane da Silva Duarte

A recepção de As bacantes, de Eurípides, ganhou novo capítulo recentemente e, curiosamente, não foi motivado nem por nova montagem, nem pelo lançamento de outra tradução da peça – já temos as de Mário da Gama Kury, Eudoro de Sousa, Jaa Torrano, Trajano Vieira. A tragédia ganhou evidência nas páginas dos suplementos culturais ao ocupar o centro do debate ideológico que se instaurou durante o período eleitoral e se acirrou após a eleição de Bolsonaro.
Em artigo na Folha de São Paulo, Pedro Sette-Câmara elegeu a montagem que o Teatro Oficina fez da peça de Eurípides, cuja estreia data de um longínquo 1995, mas que tem estado presente nos palcos brasileiros esporadicamente desde então (e de forma menos intensa no circuito internacional), como exemplo de tudo de nocivo que a concepção esquerdista de cultura trouxe para o país (Sette-Câmara, P. Nem totem nem tabu, FSP, Ilustríssima, 16/12/2018, p. 4-6). José Celso Martinez Côrrea, idealizador do espetáculo, apresentou sua réplica, uma defesa veemente de sua obra, no domingo subsequente (Côrrea, J. C. M.. O tabu do corpo nu está de volta, FSP, Ilustríssima, 23/12/2018, p. 6).
Os dois textos, desde já, constituem documentos importantes para a recepção do teatro grego e, particularmente, de Eurípides, em nosso país, e por isso não devem passar despercebidos, merecendo um comentário ainda que feito no calor da hora.
O artigo inicial, de Sette-Câmara, foi projetado para dar um testemunho sobre Olavo de Carvalho como professor e motivador de um núcleo de jovens estudantes que viram em seus Seminários na PUC/RJ e em seus livros a oportunidade de fazer a crítica da vida intelectual brasileira nos anos noventa, a seu ver, indigente e colonizada por um pensamento de esquerda que transpassava academia, imprensa e artistas. Nesse contexto, o autor escolhe a montagem de As bacantes, de Zé Celso (não é índice de intimidade, mas é como o diretor é chamado em São Paulo), que ele assistira em “junho de 1996”, aos 19 anos, para ilustrar seu argumento. Segue-se um longo relato sobre as impressões que aquela performance teve sobre ele, cujo impacto foi de certa forma decisivo para a orientação futura de sua vida intelectual.
Diga-se o que quiser do teatro praticado no Oficina, mas há de se reconhecer que é impossível ficar indiferente a ele. A resposta é sempre visceral: ame-o ou deixe-o.
Sette-Câmara descreve sua reação como a da mais profunda perplexidade – já Zé Celso a chamará de decepção. Seu relato sugere que a experiência ficou em algum lugar entre o epifânico e o traumático (e eu acho que algum psicanalista poderia escrever sobre isso), pois passados mais de vinte anos do evento o autor ainda se refere à peça como “Eurípides versão Porky’s”, rebatizando-a de “Super Suruba contra o Baixo Astral”, sem deixar de lado o fato de ter acabado como fiel depositário da cueca de um desnudado Caetano Veloso, arrastado então para o palco.
Descontada a veia polemista do autor, se não for trauma, é mistificação, dada a escolha precisa dos antagonistas, ainda bem ativos no circuito cultural.
Obviamente não estou partindo da premissa que a montagem deveria ser aclamada. Esclareço que eu mesma, tendo inúmeras oportunidades de assisti-la e o interesse em fazê-lo, declinei por ter restrições a interações forçadas entre palco e plateia – para mim “não é não” em qualquer situação e sei bem que, se escolhida para “vítima” no Oficina, não teria como escapar. Então, não tenho como julgar o espetáculo e nem é essa a questão. O certo é que o autor, assim como qualquer outro espectador, tinha e tem todo o direito de não gostar o que viu.  Acontece o tempo todo.
Suas críticas se centram em três pontos: acréscimos estranhos ao texto original que aumentaram bastante a extensão normal da obra; a hipersexualização da tragédia, quando em Eurípides imperaria a violência; a contraposição “maniqueísta” entre um Dioniso libertador e um Penteu conservador. 
O que me causou perplexidade foi a forma de colocar a questão, como se Eurípides estivesse sendo sequestrado e adulterado. Suspeita comprovada quando, logo após o espetáculo, compra e lê uma tradução da tragédia grega. Zé Celso, buscando validar um esteticismo carnavalizado, sacrificara Eurípides. O efeito é tão danoso que o autor hoje “ainda não diria que estamos a salvo de Bacantes”. Mas precisamos mesmo estar?! E aonde fica a liberdade de cada artista apresentar sua visão da obra e do espectador gostar ou não do resultado?
Passados vinte anos, o autor não parece conseguir colocar em perspectiva o que viu. Que aos 19 anos achasse que ia ao teatro ver Eurípides e se sentisse logrado, vá lá. Mas hoje, depois de ter-se graduado em grego, concluído um mestrado em Letras, estar prestes a defender um doutorado em Teoria Literária, parece no mínimo ingênuo, ou mal-intencionado, colocar as coisas nesses termos. É evidente que quem vai assistir a uma peça grega (ou qualquer outra) não deve esperar encontrar “a obra em si”, mas a interpretação que ela suscita a um diretor. Sette-Câmara não foi assistir As bacantes, de Eurípides, mas As bacantes de Eurípides por José Celso Martinez Côrrea, de modo que não havia como deturpar Eurípides visto que de Eurípides não se tratava. Em outro grau, mesmo a tradução que ele leu depois e o texto grego, a que deve ter tido acesso na graduação, são parte da longa cadeia de transmissão e recepção da obra, constituindo o editor do texto e o tradutor intérpretes privilegiados da mesma.


Sette-Câmara deve ter clara consciência disso tudo, mas cedeu à tendência de polemizar, escolhendo a dedo contra quem. Quanto ao artigo de Zé Celso, é coerente com sua visão da obra e de mundo e, perspicaz, ao perceber o uso político que o autor está fazendo de Eurípides nesse novo contexto brasileiro: “Esse seu texto estava recalcado em você há 22 anos, y agora com a vitória da direita você retorna aos seus 19 anos y traz à tona meu nome, o culto de Dionísio, o Teatro do Corpo, com cueca na mão, me elegendo como opositor à sua Revolução Cultural, à de Olavo de Carvalho y do Bolsonarismo”.

No fim, foi Eurípides a primeira vítima da guerrilha cultural que nos aguarda.

*Adriane da Silva Duarte é professora de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo (USP), atuando na graduação e na pós-graduação. Coordena, com a Profa. Dra. Zélia de Almeida Cardoso, o Grupo de Pesquisa “Estudos sobre o Teatro Antigo”, fundado em 2002. É tradutora de Aristófanes: “As Aves” (Hucitec, 2000) e “Duas Comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes” (Martins Fontes, 2005), entre outras publicações.