LES HÉROÏDES no Brasil
LES HÉROÏDES no Brasil
Tema: Heroides, de Ovídio
Com textos de Niki de Saint-Phalle, Ana Maria Martins
Marques, Hélène Cixous e das intérpretes criadoras
Em francês, com legendas.
Ficha técnica
Produção: Cie. Bruta Flor com apoio do Théâtre du Soleil
Encenadora e dramaturga: Flavia Lorenzi
Elenco: Alice Barbosa, Ayana Fuentes-Uno, Capucine Baroni, Juliette Boudet, Lucie Brandsma, Rita Grillo/
Assistente de direção: Manu Figueiredo
Direção musical: Baptiste Lopez
Direção de movimento: Luar Maria
Cenografia e acessórios: Baptiste Lopez
Figurinos: Charlotte Espinosa e Véronica Rendon
Iluminação: Robson Barros
Criação de vídeo e gráfica: Fernanda Fajardo
Administração e difusão: Thomas Perriau-Bébon
Duração: 90 minutos
Temporada: 26-27
jul.24 (FIT Rio Preto); 31 jul.24/1º ago.24 (Extensão Sesc Pinheiros)
Assistido em 1º ago. 2024
Extensão do Festival Internacional de São José do Rio Preto
(FIT Rio Preto)
Sesc Pinheiros, São Paulo – SP
nota bene
A Cie. Bruta Flor foi criada pela encenadora brasileira
Flavia Lorenzi, radicada na França. O espetáculo Les Heróïdes é de 2021,
estreando com temporadas em território francês, conforme um post do blog dessa
época. Só em 2024 a peça chegou ao Brasil, primeiro no FIT Rio Preto, no
Teatro Municipal Humberto Sinibaldi Neto, depois, numa extensão do festival de
teatro do interior de São Paulo no Sesc Pinheiros, na capital paulista.
Passou também pelo Festival de Avignon (2024) e pelo Théâtre du Soleil (2023).
Todas as imagens são da cobertura fotográfica do FIT Rio Preto de autoria de @milenaaureafotografia
Les Héroïdes é uma peça de cunho feminista,
pluridisciplinar (teatro e música), com seis atrizes/cantoras no palco. O
espetáculo nasce de uma escrita coletiva – écriture de plateau – onde
outros fragmentos literários se somam ao texto de Ovídio, Les Héroïdes,
ponto de partida para nossa dramaturgia. Textos clássicos, contemporâneos, mas
também textos escritos e improvisados pelas próprias atrizes, dão voz a uma
pluralidade de narrativas. (divulgação Sesc Pinheiros)
Seis atrizes musicistas dão corpo e coralidade às missivas.
A música, a coreografia e a visualidade reposicionam as palavras, vestindo de
signos da atualidade uma encenação que busca tecer uma poética contemporânea de
protagonismo das mulheres. Elas não estão sozinhas com seus papéis, embora cada
uma diga sua história, as outras as testemunham, contrapõem, contracenam,
adensam a cena. O que nos dizem hoje essas mulheres sobre o amor por um homem? (divulgação
FIT Rio Preto)
COMENTÁRIO
Cartas de figuras mitológicas femininas abandonadas por seus
amados e endereçadas a esses homens que nos acostumamos a chamar de heróis – o
que já não tem cabimento, convenhamos – são a matéria prima dessa criação
teatral de um coletivo de mulheres, a Cie. Bruta Flor, com sede na França. Foi
com o título francês mesmo que a peça Les Héroïdes fez curta circulação
em duas cidades paulistas – São José do Rio Preto e São Paulo – em julho de
2024. O título remete à obra Heroides, de Ovídio, poeta latino que viveu
de 42 a.C. a 18 d.C., conhecido por sua poesia erótica, como A arte de amar,
e pela extensa compilação de mitos de transformação intitulada Metamorfoses.
A dramaturgia é construída com base nas cartas de sete
personagens: Ariadne, Hipsípile, Medeia, Penélope, Dido, Dejanira, Helena. O
formato é de apresentação da personagem e um comentário feminista acerca do
episódio mitológico, com música e canto coral. Cada número, visto que não se
trata de uma narrativa linear, é resultado de improvisos na sala de ensaios, como o de Alice Barbosa como Dido, com contribuições originais das artistas e
de outros textos modernos. A montagem expõe o processo teatral, incluindo a
movimentação de praticáveis e as trocas de figurinos em cena. Não há
ambientação de época. A atrizes usam roupas atuais despojadas e os acessórios é
que configuram uma ou outra personagem, tal qual a atriz Rita Grillo como
Hipsípile nas fotos que abrem este post e o programa do espetáculo no Théâthre du Soleil.
Retomei a leitura das sete cartas, na tradução em português
europeu de Carlos Ascenso André (Cotovia 2016), que não é muito estimulante, e
isso só reforçou minha impressão inicial de que são textos totalmente
dependentes de atualização de linguagem e de abordagem para estimularem o
público hoje. Como a própria produção reconhece, “o desafio é estabelecer uma
relação entre o mundo antigo e mitológico dessas personagens femininas e o
mundo real e contemporâneo das atrizes que encarnam no palco esses mitos”. Trata-se
de uma escrita feminina no palco, retomando as proposições da autora feminista
francesa nascida na Argélia Hélène Cixoux (1937-):
É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal. É preciso que a mulher se coloque no texto – como no mundo, e na história –, por seu próprio movimento.
(tradução
de Natália Guerellus e Raísa França Bastos, Bazar do Tempo, 2023, p. 41).
Il faut que la femme s’écrive : que la femme écrive de la femme et fasse venir les femmes à l’écriture, dont elles ont été éloignées aussi violemment qu’elles ont été de leurs corps; pour les mêmes raisons, par la même loi, dans le même but mortel. Il faut que la femme se mette au texte - comme au monde, et à l’histoire -, de son propre mouvement.
(programa do espetáculo no Théâtre du Soleil)
Agora, considerando-se o atual quadro brasileiro de resgate
e reconhecimento da produção literária feminina centrada na mulher preta, vale
notar que sobem nesse palco seis mulheres brancas, tratando de questões outras
que não o estigma racista ou a precariedade social, já que são todas personagens
míticas da realeza. Um elo, contudo, merece comentário: o estímulo à sororidade,
incluindo a quebra da quarta parede para engajar o público (não só o feminino,
é claro) com a causa, no que ajuda demais a música, com performance ao
vivo, pelas atrizes-cantoras, de “Le chant des sorcières” (folclore), “Sit down
and cry” (Aretha Franklin), “With droop wings” (Henry Purcell), “Boys don’t cry”
(The Cure).
Como contraponto, a última peça de Federico García Lorca, A
casa de Bernarda Alba (1936), encenada pela trupe Os Satyros no Sesc 14
Bis, em São Paulo, que vi três dias depois de Les Héroïdes, retrata a
opressão feminina, mas de uma mãe sobre as filhas numa sociedade em que só o
homem traria a redenção à mulher. É um ótimo espetáculo teatral; a mensagem,
questionável. Não resolve afirmar no programa “a atualidade do texto de Lorca”
e “novas interpretações à medida que contextos e conceitos se moldam ou interpõem
à realidade”. Numa dramaturgia de
personagens femininas, prevalece a visão masculina da competição entre as
mulheres. Nem mesmo o elenco masculino alternativo (que eu vi) convence que
homens possam experimentar a opressão feminina.
SETE MITOS
O primeiro mito é o de Ariadne [carta 10], filha do rei Minos, de Creta, irmã de Fedra e do Minotauro. Aquela do fio que o príncipe Teseu, depois rei de Atenas, usa para sair do labirinto criado por Dédalo para esconder o ser meio-homem, meio-touro. Ariadne parte com Teseu, mas é abandonada por ele na ilha de Naxos. Ariadne casa-se com Dioniso/Baco. Teseu, com Fedra. Na peça, são mencionadas seis versões conhecidas do mito, incluindo uma de Dioniso violando a princesa, porém é a sétima, inédita, que a montagem quer impor: a de que Ariadne escolhe ficar na ilha e se apaixonar por outra pessoa.
@luciebrandsma como Dioniso e Ayana Fuentes-Uno como Ariadne |
O segundo mito é o de Hipsípile [carta 6], rainha de Lemnos,
que dá abrigo aos argonautas, a tripulação que Jasão comandou navegando a
primeira nau, a mágica Argo, em busca do velo de ouro na Cólquida, terra de
Medeia, para que pudesse retomar o trono de Iolco, usurpado por seu tio Pélias.
Nesse número, Rita Grillo, como Hipsípile, rompendo a quarta parede, diz ao
público que é obrigada pelo texto ovidiano a maldizer a rival Medeia, o que ela
não faria numa escrita própria, e denuncia as falsas lágrimas de Jasão, tal
qual Ovídio.
O terceiro mito é o de Medeia [carta 12], a princesa da
Cólquida que ajuda Jasão na sua aventura, deixando um rastro de sangue, e que é
personagem mais conhecida por ser uma mãe que mata seus filhos como vingança
pela traição do homem das falsas lágrimas com mais uma princesa (Creúsa ou
Glauce), a filha do rei de Corinto. É tamanha a fama de Medeia que as atrizes
disputam como encenar tal papel: a primeira hipótese, a de recuperar a performance
da soprano Maria Callas no papel-título do filme de Pier Paolo Pasolini (Medeia,
1969), é logo descartada como uma opção burguesa (bourgeois), depois se
pensa numa versão mais agressiva em punk-rock, mas a opção é uma piscina
de sangue.
O quarto mito é o de Penélope [carta 1], a paciente esposa de Odisseu/Ulisses, que tece de dia e à noite desfaz a mortalha do sogro Laertes. Diferente da personagem de Ovídio, a Penélope francesa, regente de Ítaca na ausência do marido distante há vinte anos, gosta do poder: “Tenho agora a legitimidade do reinado e não pretendo abrir mão dela” (Aujourd’hui je gouverne Itahque et j’adore ça. J’ai à présent la légitimité du règne et je ne compte pas m’en défaire). Se a personagem de Ovídio teme parecer velha ao reencontrar Odisseu, a da peça antevê um Ulisses careca, enrugado e barrigudo. “Sou muito diferente daquela que você conheceu. Não sei se ainda te amo. Esperei muito por Ulisses. Demais” (Je suis très différente de celle que tu as connu. Je ne sais pas si je t’aime encore. J’ai trop attendu Ulysse. Beaucoup trop).
@alicebarbochat como Dido e @ritagrillo como Eneias |
O quinto mito é o de Dido [carta 7], rainha da cidade de Cartago, historicamente, a maior inimiga dos romanos. De toda a dramaturgia, um caso mais que sensível, porque é o de uma suicida. Alice Barbosa, como Dido, criou um número de improviso em que lê uma carta que gostaria de ter recebido do membro da realeza Eneias, também filho de Vênus/Afrodite, refugiado da guerra de Troia, errante em busca do território onde seus descendentes vão erguer Roma: “Olhar, na realidade, já é amor, pensar no outro é amor, caminhar lado a lado é amor, corar é amor, ouvir é amor, tocar é amor, acariciar é amor, beijar é amor, obviamente, fazer amor é amor” (se regarder en réalité c’est déjà de l’amour, penser à l’autre c’est de l’amour, marcher côte à côte c’est de l’amour, rougir c’est de l’amour, écouter c’est de l’amour, se toucher c’est de l’amour, se caresser c’est de l’amour, s’embrasser c’est de l’amour, évidemment, faire l’amour c’est de l’amour). A atriz Rita Grillo é Eneias, com direito a beijo na rainha amorosa. Alice revela que os papéis foram distribuídos ao acaso, com informações e acessórios de cada personagem entregues em um envelope.
@luciebrandsma como defesa de Hércules, @capucinebaroni como Dejanira, @ritagrillo como juíza |
O sexto mito é o de Dejanira [carta 9], última esposa de Héracles/Hércules, o dos 12 trabalhos, que acaba alçado ao Olimpo. Hércules entra no palco como numa cerimônia de premiação oferecida por três ministras – Educação, Cultura, Costumes – apesar das culpas por agressões contra tantas mulheres, tais como a esposa Mégara, assassinada num suposto acesso de loucura, e a jovem princesa Íole, tomada como concubina depois de ele ter arrasado o reino da Ecália. Dejanira, filha de Eneu, rei de Calidon, é aquela que embebe as vestes do marido com veneno fornecido pelo centauro Nesso como se fosse uma poção do amor, cumprindo um oráculo de que Hércules morreria pela artimanha de um morto. Na peça, Dejanira não se mata de arrependimento, pelo contrário, está sendo julgada pelo crime e, diferentemente do texto ovidiano e da tradição mitológica, afirma que estava ciente do que fazia.
O sétimo mito é o de Helena de Troia [carta 17]. Nos dias de
hoje, ela é vítima de burnout, demandada demais pela beleza e outras
cobranças, como o deus Apolo humilhando-a pelas más recomendações de maquiagem
que faz como atendente de uma loja de departamentos. Ela dá um basta e o agride
com um ferro de babyliss. Nessa hora, a canção “Boys don’t cry” entra
como uma dose certa de ironia a respeito do deus chorão.
@luciebrandsma como Helena e @capucinebaroni como Apolo |
Um caleidoscópio de sete mitos traz informações demais:
“demais” como “em excesso”. É até difícil assimilar um mito antes de passar
para outro, mas a dinâmica do palco propicia uma experiência teatral agradável,
ainda que não seja marcante como a dramaturgia de Grace Passô sobre o mito de
Medeia em Mata teu pai (de volta no Sesc Pompeia em 31 de agosto e 1º de
setembro). O humor que atravessa toda a montagem de Les Héroïdes é um
dispositivo de amplificação do discurso engajado que outros grupos têm usado, como a Cia. Ato Reverso na montagem de Helena ou De quem são as mãos que fazem a guerra? (que vi
em abril e sobre a qual ainda não escrevi...vergonha!).
Renata Cazarini
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