TRAGÉDIA – peça online


Tema: ciclo tebano

Dramaturgia: Assis Benevenuto e Marcos Coletta (Editora Javali)

Direção: Ricardo Alves Jr.

Elenco: Assis Benevenuto, Italo Laureano, Marcos Coletta, Michele Bernardino

Direção de Arte: Thálita Motta

Local: Galpão Cine Horto – Belo Horizonte (MG)

Produção: Quatroloscinco – Teatro do Comum 

Duração: 70 min.

Estreia: 11 out. 2019 (presencial)

Visto em: 30 maio 2021 (estreia ao vivo com transmissão online)

Plataforma: #EmCasaComSesc


O espetáculo mergulha na tragédia grega, em especial na figura mitológica de Antígona, filha de Édipo, condenada a ser enterrada viva por decidir enterrar o corpo do seu irmão assassinado, desobedecendo as ordens do seu tio e rei Creonte. A montagem lança um olhar contemporâneo sobre os aspectos trágicos e os relaciona com o contexto brasileiro atual: os jogos de poder, a imparcialidade da justiça e o apagamento da memória. (divulgação)



Comentário

Parece que vai ser uma conversa de boteco, com três atores homens brancos barbados em torno de uma mesa de sinuca. Mas o jogo da bola branca é alegoria tanto para o jogo teatral como para a vida política brasileira. As fake news, os golpes, a intransigência de esquerda e de direita são entrelaçados com o ciclo mitológico tebano, em particular com o núcleo labdácida: Édipo e seus filhos Etéocles, Polinices, Ismene e Antígona. Daí o título Tragédia, que evoca as peças clássicas gregas, não apenas Antígona, mas também Édipo Rei, e os enredos de Édipo em Colono e de Os sete contra Tebas. Metade da montagem trata do Brasil atual; metade, da Grécia antiga; a peça toda, da importância da memória.


“Os textos são hipertextos. Esse texto nunca está sozinho. A gente se cerca de muitas referências. A gente começa do zero, mas nunca é do zero, é sempre a partir de outras referências, de outras leituras, outras peças, outros filmes” – foi o comentário de Marcos Coletta, ator e dramaturgo, após a apresentação ao vivo e transmissão online pelo YouTube e Instagram na plataforma do Sesc. Mais uma peça que fez temporada presencial antes de migrar para o digital durante a pandemia. Estará disponível até o final de junho de 2021. Algumas das transmissões do #EmCasaComSesc já não estão disponíveis. Por outro lado, sempre há novas “em cartaz”.


print de tela: Marcos Coletta


O jogo teatral também se dá na cena, não apenas no texto, com os três atores homens revezando-se no papel do profeta Tirésias e a intervenção explícita do artista com a câmera portátil. A encenação ao vivo ocorreu num espaço físico de uso coletivo, com cenário de engradados plásticos e projeção de imagens ao fundo sobre portas metálicas de enrolar. É muito distinto de ver apenas caras nos quadradinhos do Zoom – ainda que alguns espetáculos ganhem com isso, como já tratei aqui.


A tessitura desse espetáculo, que marcou os dez anos da companhia mineira de teatro, é ainda mais complexa: a repetição é um dispositivo usado como exercício de linguagem. No diálogo entre Édipo e Tirésias, da peça Édipo Rei, de Sófocles, reproduzido em boa parte durante a montagem, joga-se com diferentes traduções disponíveis em português. O discurso dos dramaturgos é formulado usando “você”, seguido das traduções de Geir Campos e de J. B. de Mello e Souza, que usam o “tu”, quando Tirésias responde ao insistente questionamento de Édipo (22’27” – 23’17”).



TIRÉSIAS

“O assassino que procura é você mesmo. Matou seu pai. Casou com sua mãe. Deitou-se com ela. Amaldiçoou sua geração e todos os seus descendentes”. Assis Benevenuto e Marcos Coletta (2019)



ÉDIPO

Repete!



TIRÉSIAS

“Digo que tu <és o assassino que procuras e que> [sem o saberes,] coabitas com gente tua em sórdida concupiscência, [e nem percebes a ignomínia a que chegaste!]” Geir Campos (1967)



ÉDIPO

Eu não entendi. Fala de novo.



TIRÉSIAS

“Pois eu asseguro [que tu és o assassino que procuras e] que te uniste, criminosamente, sem o saber, àqueles que te são mais caros; e que não sabes ainda a que desgraça te lançaste!” J. B. de Mello e Souza (1950)



ÉDIPO

Você fala difícil.



TIRÉSIAS

Mas a mensagem é simples.



Os dramaturgos também estiveram em contato com a tradução de Édipo Rei feita por Domingos Cegalla (2000), premiada com o Jabuti (2001), porque repetem no texto a seguinte frase: “Como é terrível saber quando o saber de nada serve a quem o possui”. Outro dispositivo de repetição é a reprodução de um diálogo entre dois jogadores de sinuca, primeiro, em português, depois, em italiano e, por fim, em guarani. Nesse ponto, os extremistas de direita e de esquerda, como se os irmãos Etéocles e Polinices, se matam sobre a mesa de sinuca. O mote da peça é explicitado na fala de um deles: “o objetivo é discutir ideias reais num pano de fundo ficcional que joga com a realidade”.


print da tela: Italo Laureano e Assis Benevenuto sobre a mesa


Os 20 minutos finais da peça são sobre Antígona, conduzidos por Antígona. Não se trata de uma reencenação da peça de Sófocles, mas de um longo monólogo de indignação de uma personagem icônica que tem consciência de que faz parte da tradição ocidental.


“Deixe que seu olhar penetre todas as camadas da minha pele. A minha carne sempre vermelha. Os meus ossos milenares. Eu sou a memória torturada que não puderam apagar. A filha incestuosa do herói desgraçado. Mora em mim a desdita e também a redenção”.



“Antígona não quer prêmio. Pra ficar domada? Ela deveria ser a voz que derruba a coroa, que quebra as vidraças do palácio. E no que ela se tornou? [Um dos jogadores: Um cânone, um clássico, aclamada, eterna.] Engolida pelo poder. Todo prêmio que eu recebo é uma tentativa de me manter dócil e calada. Prêmio forjado com ouro, minério, madeira de lei, sangue, petróleo. Uma joia esculpida na destruição”.


Apesar da crítica ácida veiculada pela Tragédia do Quatroloscinco, construindo um paralelo, por exemplo, entre a coação que Édipo exerce sobre Tirésias e o partidário de esquerda sobre o de direita com a mesma frase (“Você está me constrangendo!”), no final, parece que ainda nos resta a opção de confrontar a realidade sob um novo ângulo. Para o grupo, o espectador pode até escolher por qual vetor prefere transitar, se pelo vetor do passado, se pelo vetor do presente. Tal como o presente do Brasil, o passado ateniense também não passa impune: o eurocentrismo é denunciado abertamente. Essa não é uma peça que vai purgar a sua indignação.


Renata Cazarini




Comentários

  1. Obrigado pelo olhar sobre nosso trabalho Renata... obrigado pelas palavras...

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    1. Lamento não ter visto presencialmente. Quem sabe, não é?! Obrigada por continuarem trabalhando belamente na pandemia.

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