ARTE POSSÍVEL OU ARTE IDEAL? (+ UMA CRÔNICA DE PASSAGEM)


Diante da precariedade do cenário pandêmico – vacinação lenta, distanciamento social – e do conta-gotas do financiamento à cultura, um eixo de debate tem aparecido com mais frequência nas tantas lives sobre o teatro do momento: a arte possível vs. a arte ideal.


Eu só resvalei no tema na crônica anterior, porque andam dizendo por aí que o teatro possível nos tempos pandêmicos não é o teatro ideal. 


Aconteceu de o multiversado e polivalente artista Nuno Ramos ter lançado na semana passada o projeto “A extinção é para sempre” no Sesc Avenida Paulista. Trata-se de um conjunto de sete obras de diferentes modalidades: artes visuais, dança, música, performance, literatura, teatro, cinema. “É uma resposta múltipla a ataques múltiplos”, disse Nuno Ramos. As obras, que estão sendo apresentadas gradualmente, são Chama, Chão-Pão, Monumento, Iracema Fala, Os desastres da guerra, Helióptero, A extinção é para sempre.




Por ora, estão em cartaz Chama, a transmissão ao vivo por um ano inteiro de um isqueiro aceso, que estreou às 18 horas (horário de Brasília) de 25/5/2021, e Chão-Pão, uma performance que teve transmissões ao vivo neste final de semana, com registro no site do projeto.




E o que isso tem a ver com o teatro antigo? Bom, a obra Helióptero será uma versão de Antígona na comunidade de Heliópolis, região sudeste da capital paulista, uma área de um milhão de metros quadrados onde vivem 200 mil pessoas, maior favela da cidade, segundo a União de Núcleos, Associação dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS). Ainda há pouca informação circulando sobre como será essa performance teatral, que deve envolver um helicóptero como se fosse o personagem Creonte e, em terra, uma funkeira com caixas de som fazendo o papel de Antígona. São Paulo tem a maior frota de helicópteros do mundo, sendo considerada oficialmente “a capital mundial dos helicópteros”, segundo levantamento da Associação Brasileira dos Pilotos de Helicóptero (Abraphe). Daí que o título Helióptero conjugue dois atributos que se antagonizam como expressão da maior e mais rica cidade do país.




Numa entrevista após a estreia de Chão-Pão, Nuno Ramos falou sobre a premência da arte no cenário pandêmico e respondeu a uma pergunta que enviei pelo chat justamente sobre o eixo arte-possível x arte-ideal. O que ele pensa é o seguinte:


“Estamos vivendo dentro de um indefinido; se as coisas vão acontecer ou não. Eu acho que produzir hoje é uma necessidade quase física. A gente tem que baixar a bola da ‘obra-prima’. A gente tem que fazer com o que der, quando der, onde der – e fazer. Há uma ideia de parceria no ar muito forte, pedindo, pedindo. Há uma espécie de redução dos parâmetros que tínhamos cinco anos atrás, mas ao mesmo tempo uma capilarização do desejo de arte. Se há uma coisa que nós temos e que essa boçalidade que se instaurou não tem é amor pela arte, amor pela linguagem que contamina com valores amorosos”.


“Eu sinto um desejo imenso de me conectar, de fazer como der. Essa é a reação possível à desertificação cotidiana. A arte propõe uma fresta, uma perspectiva, uma janelinha, um bafo de ar”.


“A arte confunde o possível e o ideal o tempo todo. Na arte, ninguém sabe muito bem o que é o ideal e o que é o possível. Agora, se a gente tomar essas palavras no sentido mais simples, pensando que estamos num momento de grande emparedamento, acho que temos que cair no possível, mas eu nunca acho que fazer o possível seja baixar a bola do ideal. Quer dizer: arte é pra valer, é o máximo sempre, mas nem sempre se alcança isso, quase nunca”. 


“Não há modéstia em arte. Nesse sentido, é o ideal sempre. Pode ser papel e cuspe: é pra valer. Mas os parâmetros formais de cada um estão em questão porque a gente precisa se comunicar mais”.


“A gente vive um momento de tesão coletivo em termos de criação. Eu sinto que isso está no ar, uma vontade de fazer junto, e eu acho que isso me parece loucamente interessante. Um pouco como nos anos 70, né? Sob o massacre que foi o AI-5. É muito diverso o que a gente está vivendo, mas é comparável. O modo como os intelectuais se aproximaram da arte, a gente precisa recuperar isso, porque, na verdade, os fortes somos nós. Esses caras ficam aí repetindo a gente às avessas, eles trocam os sinais. É só o que eles têm. Eles não criam. Eles repetem e invertem. Então, eu acho que a gente precisa atuar em trama coletiva”.


Crédito: Daniel Mansur


Vale dizer ainda que a relação de Nuno Ramos com o mito de Antígona é retomada na exposição “Thoughts of Dust”, que reúne uma série desenhos inéditos feitos com pó (daí, “dust”) de materiais diversos, batizada de “Antígona – Segundo Ato”, na galeria Celma Albuquerque, em Belo Horizonte, até 5/6/2021. Ele já havia exibido outros desenhos baseados em Antígona em 2019, na exposição “Sol a pino”. Na atual exposição, foi incluído o audiovisual Luz Negra (2002), performance em que são enterradas caixas de som gigantescas, amplificando com abafamento a canção “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho. Talvez tenha a ver com o que vai acontecer em Helióptero.

Renata Cazarini

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