CLITEMNESTRA – UMA CANÇÃO DE AMOR (ON-LIVE) [COLABORAÇÃO]
Print Clitemnestra: Juliana Veras
Luciana Sousa (professora e poeta)*
“A arte como veículo para falar de nossas dores” (Juliana Veras)
Prestes a completar 12 anos de pesquisa e montagem, o solo de Juliana Veras – Clitemnestra, uma canção de amor – ganha nova versão. Do teatro ritual e sensorial ao formato mais intimista, ainda afeito à experimentação, essa nova montagem faz uso de percussão já na abertura. O som de tambores dá o tom. Os cacos de vidro dispostos em círculo em sua versão presencial (sim, este texto contém spoilers), pelos quais a atriz passeia durante todo o espetáculo, são tomados por ela nas mãos e na boca, arriscando mesmo lamber um dos cacos (devidamente trabalhado para não lhe representar risco). Mas do que trata, especificamente, o monólogo apresentado na última sexta-feira, 11/12, a convite do Palco SESC Cariri (CE) pelo programa “Tudo em casa Fecomércio”, seguido de debate?
Trata-se de um exercício poético, notadamente do conto “Clitemnestra ou O Crime”, de Marguerite Yourcenar, um dos poemas em prosa (ou prosas líricas) que integram Fogos (1983). Há passagens literais ou com poucas alterações, como esta:
“Conheceis a minha história: não existe um só de vós que não a tenha repetido vinte vezes ao cabo de uma refeição prolongada, acompanhada dos bocejos dos criados. E não existe uma só de vossas mulheres que não tenha sonhado ser Clitemnestra ao menos por uma noite”. (YOURCENAR, 1983, p. 29)
Escrito em 1935, foi publicado inicialmente em 1936. Ela publicou também “Safo ou O Suicídio” e “Antígona ou A Escolha”. Em seu Prefácio, Yourcenar revela tratar-se de narrativas ficcionais inspiradas por uma certa noção de amor, cujas histórias alternam-se com reflexões sobre a paixão amorosa, além de constituir-se um “produto de crise passional”. Diz ainda que todas essas narrativas, sob gradação diferente, modernizam o passado ou, como preferirmos dizer, dialogam com ele.
“O monólogo de Clitemnestra”, continua a autora, “incorpora à Micenas homérica uma Grécia rústica do tempo do conflito greco-turco de 1924 ou da aventura dos Dardanelos” (Prefácio). Há, portanto, superposição de imagens e temporalidades, de modo a confundir o passado com o presente ou transformar, de forma fragmentada, este presente em passado.
É o que nos sugere a tradução, podemos assim chamar, proposta por Juliana Veras em forte imbricamento, sobretudo, com Yourcenar. Dela destacamos o expressionismo barroco, uma das possíveis escolhas estéticas da atriz, chave para reconhecer ou capturar a complexidade das emoções operadas ou o fervor destas. A “fosforescência das pedras”, sugerida pela escritora francesa, dá vazão à iridescência de cacos de vidro evocados em poema dedicado à atriz:
Ode a Clitemnestra, uma canção de amor
Cacos de vidro no chão
Nos pés, nas mãos, no coração
Cacos
Cactos
Carpidos
Corrompido peito
Chagado amor
Altar desfeito
Toda ela é assombro e dor
Tamanho estupor
Rasgado gesto
Leito
Lenho
Banho
Do mal infesto
Um lastro de sangue e
Uma canção de amor…
(Fortaleza, 16 de março de 2018. Por ocasião dos dez anos do espetáculo)
O verso que encerra o poema e está no subtítulo do monólogo faz jus a outras escolhas da atriz. Do lamento à capela (melodia grega antiga) ao batuque, a experimentação sonora reforça, no espetáculo, a investigação dos sentimentos, que vão de um amor abnegado ao clamor pela própria vida diante da morte (matricídio), numa alusão a outros textos, especialmente a Oresteia, de Ésquilo, a Electra, também de Ésquilo, a de Sófocles e a de Eurípides, e ainda o Agamêmnon, de Sêneca. Destacamos, a seguir, algumas das canções ou trechos destas do espetáculo, executadas em diferentes cadências e ritmos.
I. “Mataste, morreste, oh mãe que me geraste!
Mas destruíste o pai e os filhos do teu sangue!
Oh, tekhnon, tekhnon...
Oh, filho, filho, tem dó de quem te gerou!”
II. “Agamêmnon foi pro mar
e eu fiquei a ver navios...
(...) que é preciso voltar já
pra cuidar de nossos filhos...”
III. “Oh, meu amor
eu cuidei dos nossos filhos
Oh, meu amor
eu cuidei de tantos anos de espera
Oh, meu amor
eu cuidei de um não constante!
eu cuidei de um sim silente
eu cuidei de uma mentira...”
A terceira canção é de uma pungência difícil de segurar. No espetáculo presencial, constitui um dos momentos mais bonitos do monólogo, com delicada interação com o público, seguido (esse momento) de um diapasão diferenciado na versão online. Há sugestão de afogamento em taça de vinho. O corpo abatido de Agamêmnon, “belo como um touro, não como um deus”, também é evocado nesse mesmo suporte, com o qual também faz ruído bem junto à lente da câmera. A torção no corpo, o rasgo no gesto e na voz, facilmente tomados como over action, são conscientes e intencionais, tomando como base o páthos que assalta a personagem e como também pontua a autora revisitada, conforme já sinalizamos no início.
As cores também o atestam: o preto do turbante que cobre a tela do celular no início e volta a cobri-lo no final da performance; das tiras no vestido rubro da atriz; o vermelho do batom, do esmalte, do vinho tinto. Cor de luto e cor de sangue, gotejante, derramado, violado, qual o de Cassandra e o de Ifigênia; uma, sacerdotisa tomada como espólio de guerra; outra, filha sacrificada em função da mesma guerra que vitimou aquela, seus pais e deixou Troia incendiada. Sangue chama sangue.
Em paralelo, há que se considerar também o exercício de metalinguagem já proposto por Yourcenar: “Tenho diante de mim inúmeras órbitas oculares, sequências de mãos pousadas sobre os joelhos, pés nus que descansam sobre o chão, pupilas fixas de onde escorre o olhar, botas fechadas nas quais o silêncio amadurece o julgamento”, assim atualizado por Juliana Veras nos dois formatos: “Teatro, palco, atriz, personagem, mito, fábula, assunto, público. Quantos olhos...”.
Já não há juízes, mas apenas espectadores conectados, de diferentes geografias, em distanciamento social. Não se veem, não se tocam, mas podem interagir via chat e refletir sobre a passagem do tempo e do amor. A emoção também é livre e resvala mesmo através da tela, ou apesar dela. “Não há segredo aqui”. Sobe o pano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÉSQUILO. Coéforas. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2004.
EURÍPIDES. Electra (Ifigênia em Aulis; As Bacantes; Electra). Tradução Natália Correia. Barcelos: Livraria Civilização, 1969.
______. Orestes. Tradução Augusta Fernanda de Oliveira e Silva. Brasília: Editora UnB, 1999.
SÊNECA. Agamêmnon. Tradução José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009.
SÓFOCLES. Electra (ÉSQUILO. Os Persas; SÓFOCLES. Electra; EURÍPIDES. Hécuba). Tradução Mário da Gama Kury. Jorge Zahar Editor, 2004.
______. Electra (Tragédias do Ciclo Troiano: Ájax, Electra, Filoctetes). Tradução Pe. E. Dias Palmeira. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1973.
______. Electra. Tradução Orlando Luiz de Araújo. Fortaleza: Substânsia, 2014.
SÓFOCLES, EURÍPIDES. Electra(s). Tradução Trajano Vieira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
YOURCENAR, Marguerite. “Clitemnestra ou o crime”. Fogos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983 [1974].
Canções do espetáculo
O chamado das Feras (Música: Juliana Veras), toque de bongô
Ode ao teatro N°15 (Música: Juliana Veras), vocalize
Mataste, morreste (Letra: livre adaptação de Eurípides e Sófocles / Música: Juliana Veras)
Agamêmnon foi pro mar (Livre adaptação de Madalena, de Chico Buarque / Música: Juliana Veras), samba
Oh, meu amor (Letra e música: Juliana Veras)
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