Édipo encapsulado na trama da guerra do Líbano
“INCÊNDIOS”,
UMA VOZ ATUAL DOS SÉCULOS ANTIGOS.
A plateia exclama “Oh!” e,
inesperadamente, acontece em pleno século XXI o que a poética da Antiguidade
denominava “anagnorisis” (ἀναγνώρισις),
ou seja, o ansiado episódio do reconhecimento da verdadeira identidade de um
personagem. Foi o que testemunhei na apresentação de Incêndios em 30 de abril de 2016, no Teatro do Sesc Santos, com
ocupação plena dos quase 800 assentos. A peça do franco-libanês Wajdi Mouawad, encenada por Aderbal Freire-Filho, entrava na reta
final de uma excelente carreira de três anos nos palcos brasileiros, em que
atraiu mais de 60 mil espectadores. O texto francês (Incendies), contudo, é de
2003, quando estreou no Canadá, portanto, não é difícil a conta que revela a
defasagem de uma década até que a peça chegasse ao Brasil, quando a tradução de Angela Leite Lopes também foi publicada em livro.
(...)
Você
está entendendo direito: ele torturou sua mãe e sua mãe, sim, foi torturada
pelo filho e o filho violentou sua mãe. O filho é o pai de seu irmão, de sua
irmã. Está ouvindo minha voz, Sarwane? Parece a voz dos séculos antigos. Mas
não, Sarwane, é de hoje que data minha voz.
A anagnorisis que decorre dessa revelação acontece não apenas no
palco, entre os personagens, mas também no auditório, entre dramaturgo e
espectador, porque é como se Mouawad dissesse: “Você me ouve? Esse mito vem da
Grécia antiga, mas é uma tragédia que se repete para sempre. Édipo encapsulado na trama da guerra do
Líbano”.
Aristóteles, no
século IV a.C., afirmara, no capítulo XI de sua Poética (1452a), na tradução de Eudoro de Souza:
O reconhecimento, como indica o próprio significado da
palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou
inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.
(§60) A mais bela de todas as formas de reconhecimento é a que se dá juntamente
com a peripécia, como, por exemplo, no Édipo.
(§61)
A peça de Mouawad não revolve
exclusivamente em torno do filho que é também o marido, do irmão que é também o
pai, ainda que esse reconhecimento seja o clímax. Ela se centra na busca da
verdade, argumento axial na versão canônica do mito, a peça Édipo Rei, de Sófocles, do século V
a.C., que é muitas vezes citada como a primeira trama policial da história – e
o material publicitário da montagem brasileira tira proveito disso, fazendo
assim a única referência ao mito que sustenta o enredo: “Incêndios é uma história de detetive, como Édipo Rei, como Hamlet”.
O livro em PDF pode ser baixado aqui.