RECEPÇÃO DE ÓPERA NO BRASIL – MACBETH (VERDI)

 

crédito: Rafael Salvador

Foi puro acaso. No caso, boa sorte. Eu não tinha ingresso para a estreia de Macbeth, a ópera de Verdi (1865 [1847]), no Theatro Municipal de São Paulo, mas rolou. A breve temporada (31 out – 09 nov. 2025) esgotada. Tem sido assim no equipamento cultural da Prefeitura de São Paulo. Melhor investir no passaporte da temporada operística.

O que aconteceu na estreia da montagem encenada por Elisa Ohtake (neta da artista plástica Tomie Ohtake) tem repercutido entre artistas, críticos e gestores culturais, com implicações (talvez motivações) de ordem política. Em resumo, bem resumido, houve gritaria na sala de espetáculos do TMSP quando os intervalos para troca de cenário, em duas ocasiões durante a apresentação, foram preenchidos com vídeos bem-humorados, porém deslocados ou, ainda mantendo a rima e aumentando a acidez, humorísticos, porém descabidos dos bastidores – certamente gravados, eles deveriam parecer “ao vivo”. Detalhes estão nas críticas que coloco no final do post.

A indignação inicial de parte da plateia que denunciava algum nível de corrupção estética da sessão operística foi silenciada na marra por outro grupo mais vocal. Sim, dá pra chamar de baixaria. E aí já há o que dizer academicamente sobre “recepção de clássicos”, o assunto que, de fato, me faz parar tudo e escrever não sem atraso este post, que não é nem crítica nem ensaio, muito pelo contrário. Tivesse a plateia se mantido silenciosa, expurgando sua surpresa lastimosa ou elogiosa apenas nas conversas discretas do intervalo regulamentar de 20 minutos, arrisco que esse Macbeth não chegaria a ser objeto de estudo, prova de que a obra se realiza, efetivamente, no ponto de recepção.

Pontos a considerar num estudo de caso ficam em suspeição:

  • ·       estatísticas de uma temporada esgotada e de sala cheia como indício de “sucesso”, entendido como “receptividade”, isto é, boa disposição em relação a algo ou alguém.
  • ·       a projeção de um perfil do espectador com base em pressupostos, como o comportamento cordato do público de ópera, para definir um horizonte de expectativa.

Portanto, a análise da recepção deve ser criticamente qualitativa. Sobre o público da estreia dessa montagem de Macbeth, pode-se dizer que fosse extrema- ou até excessivamente rigoroso com a experiência – não necessariamente com o conceito – da inventividade. Essa é a palavra usada pelas gestões do TMSP e da Sustenidos no artigo de abertura do programa, que pode ser baixado aqui. No agradecimento a Elisa, afirma-se que a diretora cênica e cenógrafa revelou “nessa sua primeira incursão no universo da ópera um talento artístico de rara e necessária inventividade”.

Também é interessante que o que é “ainda reverberante nos dias de hoje”, na opinião das autoras Andrea Caruso Saturnino e Alessandra Costa, não é a ópera do século XIX, mas a tragédia do século XVII. Importa observar que o termo adotado – não creio que tecnicamente – é “reverberação” da peça shakespeariana (não vamos problematizar o grau de colaboração na chamada ‘peça escocesa’). Embora a palavra “recepção” não apareça no texto de modestos cinco parágrafos intitulado “Entre sombras e espelhos: a humanidade em Macbeth”, é a isso que se referem hiperbolicamente:

Enquanto Macbeth e sua parceira sucumbem, em cena, à ambição desmedida, a plateia, séculos depois, é convidada a refletir sobre os perigos da tirania e da quebra de laços de lealdade. Essa reflexão coletiva é um ato civilizatório.

A ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901), cuja estreia mundial aconteceu em 1847 no Teatro della Pergola, em Florença, e passou por revisão do compositor em 1865 com nova estreia no Théâtre Lyrique em Paris, tem libreto de Francesco Maria Piave (1810-1876), com acréscimos de Andrea Maffei (1798-1885). A versão revisada italiana estreou em 1874 no Teatro ala Scala, em Milão. A trama do assassinato do rei Duncan, motivada pela ambição que brota de previsões mágicas ao homem da nobreza Macbeth é preservada no libretto. Verdi tem outras duas óperas baseadas no teatro de Shakespeare: Otello (1887) e Falstaff (1892), ambas com libretti de Arrigo Boito.

A ópera de quatro atos foi encenada na íntegra na temporada 2025, portanto, a inventividade aclamada pela gestão do TMSP não vem de cortes, como costuma acontecer com montagens comerciais de Shakespeare. A aposta, informa o site oficial, foi numa “abordagem cênica contemporânea e ousada”, considerando-se a formação da diretora em dança & teatro e sua proximidade “da obra de Shakespeare com sua instigante Peça para adultos feita por crianças, na qual crianças interpretam Hamlet”.

A própria Elisa Ohtake, encarregada também da preparação corporal, informa sem pejo que sua direção é exacerbada, pautada pela hybris que identifica na peça e na ópera e que ela explora com a liberdade do teatro contemporâneo:

Assim como a violenta ganância dos protagonistas, alguns objetos de cena e seus manuseios também operam na desmedida. (...) Em um contexto de ópera, porém, com códigos muito mais definidos que o teatro contemporâneo, qualquer pequena extravagância tende a ser mais notada e estranhamentos potentes podem ser um pouco maiores, inclusive aqueles acerca da ultraviolência e de nosso torpor atual. (“Abismo e torpor”, Programa, p. 14)

Pronto! Vê-se que ela estava preparada para as vaias esparsas que recebeu ao subir ao palco para os agradecimentos na estreia.

Dados os contextos de recepção e de produção, agora podemos tratar de peculiaridades da cenografia construída simultaneamente à direção cênica, segundo atesta Elisa Ohtake (Programa, p. 13). Na foto abaixo, nota-se no cenário duas poltronas infláveis transparentes e um escorpião preto do mesmo tipo. Enquanto as primeiras são objetos cênicos até certo ponto necessários porque os protagonistas sentam-se nas poltronas, o escorpião gigante é um signo extravagante, que ressurge em várias cenas. Será preciso mostrar o “veneno” que perpassa a trama inteira?


crédito: Rafael Salvador

Famosa cena tanto da peça quanto da ópera é a do sonambulismo de Lady Macbeth, assombrada pela culpa e pelo sangue que imagina grudados em suas mãos e do qual não consegue se livrar. O inusitado é a entrada da personagem carregando várias embalagens plásticas de alvejantes, incluindo aquele tira-manchas pink. Na estreia, uma das embalagens caiu das mãos de Marigona Qerkezi, soprano e protagonista muito elogiada, cuja performance é bastante teatralizada. Infelizmente, não consegui uma foto dessa cena e paro por aqui.

Penso que não seja preciso exemplificar mais para sustentar o argumento de que a desmedida anunciada por Elisa Ohtake depende do conhecimento prévio não apenas da intriga, especificamente, da insanidade que leva ao suicídio de Lady Macbeth, mas da tradição teatral que acompanha essa cena. É claro que as embalagens plásticas nas mãos de uma rainha da Escócia do século XI causam estranhamento, mas a extravagância cenográfica se consuma, creio, somente no espectador que reconhece a ópera como recepção de Shakespeare. E dá pra rir.

Durante a sessão, a palavra que me vinha à cabeça era “deboche” no sentido de desprezo risível nutrido contra quem está no poder sem legitimidade. No banquete de coroação, Macbeth, o inclemente novo rei da Escócia, numa alucinação, acaba se debatendo com um uma macarronada em suas mãos. Elisa Ohtake parece fazer deboche dos poderosos. Depois, me lembrei de Linda Hutcheon e seus estudos sobre a paródia.

É precisamente a paródia – esse formalismo aparentemente introvertido – que paradoxalmente provoca um confronto direto com o problema da relação da estética com um mundo de significação externo a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas de significação definidos socialmente (passados ​​e presentes), em outras palavras, com a ideologia e a história. (Hutcheon, The Politics of Postmodernism: Parody and History, p. 179-180)

[It is precisely parody - that seemingly introverted formalism - that paradoxically brings about a direct confrontation with the problem of the relation of the aesthetic to a world of significance external to itself, to a discursive world of socially defined meaning systems (past and present) - in other words, to ideology and history.]

De acordo com Hutcheon, a paródia é a repetição com diferença, uma transgressão do conhecido e escrutínio do contemporâneo. Tomando-o como um dispositivo entre a arte e o mundo capaz de criticar o que tenta descrever, assim, a direção cênica de Macbeth-Ohtake 2025 parodia o que elege como modelo. Essa crítica mundana que emerge do con-sagrado, exemplificada pela inserção do audiovisual em que o soprano faz a leitura de um trecho da tragédia de Shakespeare ausente do libretto, incomoda. A transgressão de gêneros artísticos – do texto escrito para o vídeo dentro da ópera – não tem fácil aceitação, mas é um procedimento típico da pós-modernidade, que não poucas vezes reafirma a integridade e autonomia de uma obra de recepção.

Críticas pontuais

Os dois interlúdios, porém, além de cinematograficamente fracos, nada acrescentam à fruição da obra, e nem provocam distanciamento. (Crítico da FSP Sidney Molina)

Sem contar que a diretora não acredita na nossa capacidade intelectual de entender a peça, e insere um trecho lido da obra de Shakespeare no meio do espetáculo, ela julga que a obra de Verdi está incompleta? (Enviado por Roberto Ferreira em qua, 05/11/2025 - 12:09) 

crédito: Rafael Salvador

Como eu disse no início, este post não é uma crítica. Nem tenho conhecimento técnico para comentar timbres e tonalidades das vozes. Dá pra dizer, sem dúvida alguma, que a montagem é intensamente teatral, com muita movimentação cênica, ocupando a profundidade do palco. As cenas em que o Coro Lírico Municipal (acima) participa como três grupos representando as três feiticeiras foram as mais sedutoras, mas na noite de estreia foi o soprano que recebeu mais aplausos.


crédito: Renata Cazarini

Li todas as críticas que pude encontrar – não foram muitas. Saliento o comentário de Márvio dos Anjos n’O Globo sobre a ópera ser um “gênero em que a tradição musical convive com a crescente importância das releituras cênicas”.


FICHA TÉCNICA
ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL
CORO LÍRICO MUNICIPAL
Roberto Minczuk, direção musical
Elisa Ohtake, direção cênica e cenografia
Hernán Sánchez Arteaga, regente do Coro Lírico Municipal
Aline Santini, design de luz
Gustavo Silvestre e Sonia Gomes, figurino
Simone Batata, visagismo
Roberto Alencar e Elisa Ohtake, preparação corporal
Ronaldo Zero, assistente de direção cênica
 
Lady Macbeth
Marigona Qerkezi (dias 31, 4 e 8)
Olga Maslova (dias 1, 5, 7 e 9)
 
dias 31, 04, 07 e 09
Craig Colclough, Macbeth
Savio Sperandio, Banquo
Giovanni Tristacci, Macduff
 
dias 01, 05 e 08
Douglas Hahn, Macbeth
Andrey Mira, Banquo
Enrique Bravo, Macduff
 
Elenco único (todas as datas)
Isabella Luchi, Lady-in-waiting
Mar Oliveira, Malcolm
Julián Lisnichuk, Assassino, Arauto e Criado de Macbeth
Rogério Nunes, Médico
Alessandro Gismano, 1ª aparição
Graziela Sanchez,  2ª aparição
Cauê Souza Santos,  3ª aparição
Allyson Amaral, Duncan, Rei da Escócia (ator)
Maxx Oliveira, Fleanzio (ator)
 
Elenco de apoio
Alessandra Helena
Gregory Henrique Guimarães
Kaio Borges
Leila Bass

Críticas

https://www.concerto.com.br/textos/critica/viva-opera-viva

https://notasmusicais.com/macbeth-no-tmsp-producao-de-elisa-ohtake-e-dramaticamente-pobre/

https://operaeballet.blogspot.com/2025/11/macbeth-mambembe-no-theatro-municipal.html

https://operaeballet.blogspot.com/2025/11/macbeth-tmsp-opera-de-verdi-sob.html

LINKS DA FSP

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/10/opera-macbeth-leva-aura-gotica-ao-theatro-municipal-em-drama-sobre-a-ambicao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/11/musica-de-excelencia-contrasta-com-direcao-das-cenas-em-macbeth.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/11/musico-contrario-a-gestao-do-theatro-municipal-de-sp-e-afastado-apos-criticar-opera.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/11/artistas-do-theatro-municipal-protestam-contra-gestora-apos-afastamento-de-musico.shtml

GALERIA DE FOTOS

Estreia em 31 out. 2025




Comentários