RECEPÇÃO DE ÓPERA NO BRASIL – ESTUDO DE CASO: MACBETH (VERDI)
Foi puro acaso. No caso, boa
sorte. Eu não tinha ingresso para a estreia de Macbeth, a ópera de Verdi
(1865 [1847]), no Theatro Municipal de São Paulo, mas rolou. A breve temporada
(31 out – 09 nov. 2025) esgotada. Tem sido assim no equipamento cultural da
Prefeitura de São Paulo. Melhor investir no passaporte da temporada operística.
O que aconteceu na estreia da
montagem encenada por Elisa Ohtake (neta da artista plástica Tomie Ohtake) tem
repercutido entre artistas, críticos e gestores culturais, com implicações
(talvez motivações) de ordem política. Em resumo, bem resumido, houve gritaria
na sala de espetáculos do TMSP quando os intervalos para troca de cenário, em
duas ocasiões durante a apresentação, foram preenchidos com vídeos bem-humorados,
porém deslocados ou, ainda mantendo a rima e aumentando a acidez, humorísticos,
porém descabidos dos bastidores – certamente gravados, eles deveriam
parecer “ao vivo”. Detalhes estão nas críticas que coloco no final do post.
A indignação inicial de parte
da plateia que denunciava algum nível de corrupção estética da sessão
operística foi silenciada na marra por outro grupo mais vocal. Sim, dá pra
chamar de baixaria. E aí já há o que dizer academicamente sobre a “recepção de
clássicos”, o assunto que, de fato, me fez parar tudo e escrever - não sem atraso - este post, que não é nem crítica nem ensaio, muito pelo contrário. Tivesse a
plateia se mantido silenciosa, expurgando sua surpresa lastimosa ou elogiosa
apenas durante as conversas discretas do intervalo regulamentar de 20 minutos, arrisco
que esse Macbeth não chegaria a ser objeto de estudo, prova de que a obra
se realiza, efetivamente, no ponto de recepção.
Pontos a considerar num estudo de caso ficam em suspeição:
- · estatísticas de uma temporada esgotada e de sala
cheia como indício de “sucesso”, entendido como “receptividade”, isto é, boa
disposição em relação a algo ou alguém.
- · a projeção de um perfil do espectador com base
em pressupostos, como o comportamento cordato do público de ópera, para definir
um horizonte de expectativa.
Portanto, a análise da
recepção deve ser criticamente qualitativa. Sobre o público da estreia dessa
montagem de Macbeth, pode-se dizer que fosse extrema ou até excessivamente
rigoroso com a experiência – não necessariamente com o conceito – da inventividade.
Essa é a palavra usada pelas gestoras do TMSP e da Sustenidos no artigo de
abertura do programa, que pode ser baixado aqui. No agradecimento a
Elisa Ohtake, afirma-se que a diretora cênica, também cenógrafa, revelou “nessa sua primeira
incursão no universo da ópera um talento artístico de rara e necessária inventividade”.
Também é interessante verificar que o
que é “ainda reverberante nos dias de hoje”, na opinião das autoras do artigo Andrea
Caruso Saturnino e Alessandra Costa, não é a ópera italiana do século XIX, mas a
tragédia inglesa do século XVII. Importa observar que o termo adotado – não creio que
tecnicamente – é “reverberação” da peça shakespeariana (não vamos problematizar
o grau de colaboração na chamada ‘peça escocesa’). Embora a palavra “recepção”
não apareça no texto de modestos cinco parágrafos intitulado “Entre sombras e
espelhos: a humanidade em Macbeth”, é a isso que se referem hiperbolicamente:
Enquanto Macbeth e sua parceira sucumbem, em
cena, à ambição desmedida, a plateia, séculos depois, é convidada a refletir
sobre os perigos da tirania e da quebra de laços de lealdade. Essa reflexão
coletiva é um ato civilizatório.
A ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901), cuja estreia
mundial aconteceu em 1847 no Teatro della Pergola, em Florença, e passou por
revisão do compositor em 1865 com nova estreia no Théâtre Lyrique em Paris, tem
libreto de Francesco Maria Piave (1810-1876) e acréscimos de Andrea Maffei
(1798-1885). A versão revisada italiana estreou em 1874 no Teatro alla Scala, em
Milão. A trama do assassinato do rei Duncan, motivada pela ambição que brota de
previsões mágicas ao homem da nobreza Macbeth é preservada no libretto. Verdi
tem outras duas óperas baseadas no teatro de Shakespeare: Otello (1887)
e Falstaff (1892), ambas com libretti de Arrigo Boito.
A ópera de quatro atos foi encenada na íntegra na
temporada 2025, portanto, a inventividade aclamada pela gestão do TMSP não vem
de cortes, como costuma acontecer com montagens comerciais de Shakespeare. A aposta,
informa o site oficial, foi numa “abordagem cênica contemporânea e
ousada”, considerando-se a formação da diretora em dança & teatro e sua
proximidade “da obra de Shakespeare com sua instigante Peça para adultos feita
por crianças, na qual crianças interpretam Hamlet”.
A própria Elisa Ohtake,
encarregada também da preparação corporal, informa sem pejo que sua direção é
exacerbada, pautada pela hybris que identifica na peça e na ópera e que
ela explora com a liberdade do teatro contemporâneo:
Assim como a violenta ganância
dos protagonistas, alguns objetos de cena e seus manuseios também operam na
desmedida. (...) Em um contexto de ópera, porém, com códigos muito mais
definidos que o teatro contemporâneo, qualquer pequena extravagância tende a
ser mais notada e estranhamentos potentes podem ser um pouco maiores, inclusive
aqueles acerca da ultraviolência e de nosso torpor atual. (“Abismo
e torpor”, Programa, p. 14)
Pronto! Vê-se que ela estava preparada
para as vaias esparsas que recebeu ao subir ao palco para os agradecimentos na
estreia.
Dados os contextos de
recepção e de produção, agora podemos tratar de peculiaridades da cenografia
construída simultaneamente à direção cênica, segundo atesta Elisa Ohtake (Programa,
p. 13). Na foto abaixo, pode-se observar no cenário duas poltronas infláveis
transparentes e um escorpião preto do mesmo tipo. Pois bem, enquanto as primeiras são
objetos cênicos até certo ponto necessários porque os protagonistas sentam-se
nas poltronas, o escorpião gigante é um signo extravagante, que ressurge em várias
cenas. Será preciso mostrar o “veneno” que perpassa a trama inteira?
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| crédito: Rafael Salvador |
Famosa cena tanto da peça quanto
da ópera é a do sonambulismo de Lady Macbeth, assombrada pela culpa e pelo sangue
que imagina grudados em suas mãos e dos quais não consegue se livrar. O inusitado
é a entrada da personagem carregando várias embalagens plásticas de alvejantes,
incluindo aquele tira-manchas pink. Na estreia, uma das embalagens caiu
das mãos de Marigona Qerkezi, soprano e protagonista muito elogiada cuja
performance é bastante teatralizada. Infelizmente, não consegui uma foto dessa
cena e paro por aqui.
Penso que não seja preciso
exemplificar mais para sustentar o argumento de que a desmedida anunciada por
Elisa Ohtake depende do conhecimento prévio não apenas da intriga, isto é,
da insanidade que leva ao suicídio de Lady Macbeth, mas da tradição teatral que
acompanha essa cena. É claro que as embalagens plásticas nas mãos de uma rainha
da Escócia do século XI causam estranhamento, mas a extravagância cenográfica
se consuma, creio, somente no espectador que reconhece a ópera como recepção de
Shakespeare. E dá pra rir.
Durante a sessão, a palavra
que me vinha à cabeça era “deboche” no sentido de desprezo risível, nesse caso, nutrido
contra quem está no poder sem legitimidade. No banquete de coroação, o baixo-barítono Craig Colclough, que fez na estreia a parte de Macbeth, o
inclemente novo rei da Escócia, acaba se debatendo, em meio a uma alucinação, com um uma
macarronada pendurada em suas mãos. Elisa Ohtake parece fazer deboche dos poderosos. Depois,
me lembrei de Linda Hutcheon e de seus estudos sobre a paródia:
É
precisamente a paródia – esse formalismo aparentemente introvertido – que
paradoxalmente provoca um confronto direto com o problema da relação da
estética com um mundo de significação externo a si mesmo, com um mundo
discursivo de sistemas de significação definidos socialmente (passados e
presentes), em outras palavras, com a ideologia e a história. (Hutcheon,
The
Politics of Postmodernism: Parody and History, p.
179-180)
[It
is precisely parody - that seemingly introverted formalism - that paradoxically
brings about a direct confrontation with the problem of the relation of the
aesthetic to a world of significance external to itself, to a discursive world
of socially defined meaning systems (past and present) - in other words, to
ideology and history.]
De acordo com Hutcheon, a
paródia é a repetição com diferença, uma transgressão do conhecido e escrutínio
do contemporâneo. Tomando-a como um dispositivo entre a
arte e o mundo, capaz de criticar o que tenta descrever, assim, a direção cênica
de Ohtake parodia o que elege como modelo. Essa crítica mundana
que emerge do objeto artístico sagrado, exemplificada pela inserção do audiovisual em
que o soprano faz a leitura de um trecho da tragédia de Shakespeare ausente do libretto,
incomoda. A transgressão de gêneros artísticos – do texto escrito para o vídeo
dentro da ópera – não tem fácil aceitação, mas é um procedimento típico da
pós-modernidade, o qual não poucas vezes reafirma a integridade e a autonomia de uma
obra resultante da recepção.
Críticas pontuais
Os dois interlúdios, porém,
além de cinematograficamente fracos, nada acrescentam à fruição da obra, e nem
provocam distanciamento. (Crítico da FSP Sidney Molina)
Sem contar que a diretora não acredita na nossa capacidade intelectual de entender a peça, e insere um trecho lido da obra de Shakespeare no meio do espetáculo, ela julga que a obra de Verdi está incompleta? (Enviado por Roberto Ferreira em qua, 05/11/2025 - 12:09)
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| crédito: Rafael Salvador |
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| crédito: Renata Cazarini |
Li todas as críticas que pude encontrar – não foram muitas. Saliento o comentário de Márvio dos Anjos n’O Globo sobre a ópera ser um “gênero em que a tradição musical convive com a crescente importância das releituras cênicas”.
ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL
CORO LÍRICO MUNICIPAL
Roberto Minczuk, direção musical
Elisa Ohtake, direção cênica e cenografia
Hernán Sánchez Arteaga, regente do Coro Lírico Municipal
Aline Santini, design de luz
Gustavo Silvestre e Sonia Gomes, figurino
Simone Batata, visagismo
Roberto Alencar e Elisa Ohtake, preparação corporal
Ronaldo Zero, assistente de direção cênica
Lady Macbeth
Marigona Qerkezi (dias 31, 4 e 8)
Olga Maslova (dias 1, 5, 7 e 9)
dias 31, 04, 07 e 09
Craig Colclough, Macbeth
Savio Sperandio, Banquo
Giovanni Tristacci, Macduff
dias 01, 05 e 08
Douglas Hahn, Macbeth
Andrey Mira, Banquo
Enrique Bravo, Macduff
Elenco único (todas as datas)
Isabella Luchi, Lady-in-waiting
Mar Oliveira, Malcolm
Julián Lisnichuk, Assassino, Arauto e Criado de Macbeth
Rogério Nunes, Médico
Alessandro Gismano, 1ª aparição
Graziela Sanchez, 2ª aparição
Cauê Souza Santos, 3ª aparição
Allyson Amaral, Duncan, Rei da Escócia (ator)
Maxx Oliveira, Fleanzio (ator)
Elenco de apoio
Alessandra Helena
Gregory Henrique Guimarães
Kaio Borges
Leila Bass
Críticas
https://www.concerto.com.br/textos/critica/viva-opera-viva
https://notasmusicais.com/macbeth-no-tmsp-producao-de-elisa-ohtake-e-dramaticamente-pobre/
https://operaeballet.blogspot.com/2025/11/macbeth-mambembe-no-theatro-municipal.html
https://operaeballet.blogspot.com/2025/11/macbeth-tmsp-opera-de-verdi-sob.html
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| Estreia em 31 out. 2025 |









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