A DIMENSÃO CORAL EM “ANTÍGONA TRAVESTI”

 

Mito: Antígona (Sófocles)
Dramaturgia: Renata Carvalho (Antígona Travesti, Editora Javali, 2025, bilíngue: português-inglês/trad. Soledad Yunge)
Temporada: 16 out. 2025 – 30 nov. 2025 (qui. a dom.)
Diferentes locais em sequência: Vila Maria Zélia, o Teatro Taib, o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, a Casa 1, Ocupação Nove de Julho.
Assistido em 9 nov. 2025 (Teatro de Arena Eugênio Kusnet)
Duração: 60 min.
Direção: Renata Carvalho
Elenco: Renata Carvalho (Antígona); componentes do Coro Travesti: Alice Guél, Andreas Mendes, Ave Terrena, Ayô Tupinambá, Daniela D’eon, Maria Lucas, Thays Villar.
Standing: Tricka Carvalho
Iluminação: Juliana Augusta Vieira
Produção: Gabi Gonçalves, Rodrigo Fidelis (Corpo Rastreado)
Bilheteria performática: Natasha Corbelino e Tricka Carvalho
Hashtag: #foracreonte

Sinopse

Polínice, uma travesti de 23 anos, filha de Antígona, é brutalmente assassinada no centro de Tebas, uma megalópole que acaba de sofrer um golpe de Estado de Creonte. Ao tentar dar as honras fúnebres à filha, Antígona é informada do decreto de Creonte: é proibido que Polínice seja sepultada com roupas femininas e com seu nome [social] na lápide. Inconformada, Antígona convoca uma reunião entre todas as travestis e mulheres trans de Tebas a fim de derrubar o tirano e dar à filha as honras que lhe cabem. (Divulgação)

“Além da obra de Sófocles, fui inspirada pelo livro O Parque das Irmãs Magníficas, da argentina Camila Sosa Villada, pelo espetáculo musical Gota d’Água, de Chico Buarque, Paulo Pontes e Gianni Ratto, baseado em Medeia, por Mau Hábito, da espanhola Alana S. Portero, e por fatos reais acontecidos no Brasil, como a Operação Tarântula, criada em 1987 pela polícia de São Paulo para perseguir e eliminar travestis, e a morte da travesti Qelly da Silva, em Campinas, que teve seu coração arrancado e substituído por uma santa”, conta a diretora e dramaturga. (divulgação)

O espetáculo nasceu a partir de um pedido da atriz Leila Pereira Daianis, que há mais de 30 anos dedica-se a resolver problemas sociais das mulheres e da população LGBTQIAPN+ na Itália. Atualmente, ela é presidente da Associação Libellula, uma entidade responsável por oferecer assistência médica, psicológica e jurídica principalmente aos transexuais, às mulheres e aos imigrantes. Inclusive, a primeira leitura dramática da peça aconteceu em Roma, em dezembro de 2024, e contou com as presenças cênicas de Barbara Rodrigues, Mel Campos, Raissa Dubrahalém e de Leila e Renata (divulgação).

Para o histórico da estreia na Itália, veja meu post anterior.

Comentário

A peça de Renata Carvalho – definitivamente autoral – é mais de uma coisa ao mesmo tempo: é teatro convencional, sim, mas é também ocasião de homenagem, ponto de encontro acolhedor, ação conscientizadora, convocação civil. A expressão “célula de resistência”, que evoca a ditadura militar, usada pela divulgação de Antígona Travesti, resume bem o acontecimento.

Trata-se de um acontecimento mais político do que estético. E isso é bom. Mas não há descuido com o teatro como instância artística. Acima de tudo, o dispositivo coral põe em funcionamento a dramaturgia, ainda que Antígona, interpretada pela grande atriz que é Renata Carvalho, mantenha a centralidade da protagonista, com falas sensíveis e sedutoras, como essa:

Ninguém jamais adormeceu de verdade se uma travesti não lhe cantou uma canção de ninar. [original de Camila Sosa Villada]

Final da apresentação em 9 nov. 2025: Renata Carvalho ao microfone e Coro Travesti

O Coro Travesti faz homenagem explícita a traviarcas – palavra ainda não dicionarizada que significa “travestis e mulheres trans mais velhas”, de acordo com nota no livro da dramaturgia, recém editado pela Javali. Note-se que, na peça, Antígona é chamada todo o tempo de “madrinha”, quer dizer, ela é também uma traviarca. O Coro Travesti é formado por Alice Guél como Indianarae Siqueira, Andreas Mendes como Keila Simpson, Ave Terrena como Jovanna Cardoso, Ayô Tupinambá como Eloína dos Leopardos, Daniela D’eon como Leila Pereira Daíanis, Maria Lucas como Tila Rios, Thays Villar como Divina Valéria.


Arena do Teatro Eugênio Kusnet em 9 nov. 2025

A peça busca o engajamento da plateia e o espaço intimista e um tanto soturno da arena do Teatro Eugênio Kusnet, no centro da capital paulista, favorece a experiência imersiva da produção (nada posso dizer dos outros espaços onde a peça foi encenada). Embora convocada a agir como coletivo, a audiência não chega a ser intim(id)ada individualmente.

A função do Coro, com suas componentes sentadas em meio ao público, é envolver a gente, que passa a fazer parte do velório de Polínice assim que adentra a sala de espetáculo. O ambiente é de uma casa onde Antígona está fazendo um cafezinho real e nos oferece uns docinhos reais, só que não é festa, é luto – e somos chamadas a usar preto desde quando compramos o convite pelo whatsapp.

A “operação” tem início antes da presença no teatro, com uma campanha publicitária que envolve um mote político na hashtag #foracreonte e estratégia de supostos segredos para que o local de mobilização civil contra o ditador não seja descoberto. Sobre a extensão do acontecimento teatral para fora do espaço cênico, que eu já defendi como potência criativa após a “virtualização” do teatro durante a pandemia, foi bem notada nessa crítica de Danny Vianna.


Em primeiro plano: Renata Carvalho e Eduardo Suplicy em 9 nov. 2025

Curiosamente, na noite em que assisti à peça (9 nov. 2025), o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP), 84 anos, esteve presente. Ele não se uniu ao grupo que prepara cartazes para a manifestação pela liberdade civil e direitos trans. Eu fui, mas meu cartaz ficou inacabado: é tudo muito rápido. Não, a gente não sai para as ruas. Tudo se encerra ali mesmo, no ambiente fechado.

É o processo de conscientização e mobilização que importa. Diferente do que se possa imaginar, não há unanimidade em favor da manifestação pública já que a violência ronda a nossa comunidade ali reunida. O temor é inevitável. A construção do consenso é tensa, marcada por duras falas em alto volume. A marcante frase de Antígona da peça grega antiga cabe agora na boca de uma componente do Coro Travesti – e na primeira pessoa do plural:

ELOÍNA – Mas nós não nascemos para o ódio, nascemos para o amor.

O decreto de Creonte, chamado de general, pastor, monsenhor, impede vestir a jovem trans Polínice com roupas femininas e inscrever seu nome [social] na lápide. Caso contrário, ela permanece insepulta, presa de aves de rapina.

ANTÍGONA – [Nem] o presidente Creonte e nenhum outro de terno, farda ou bata tem o direito de me coagir a abandonar as minhas!

Algumas imagens da tragédia sofocliana são visíveis na Antígona Travesti, como o mau presságio das aves, comentado pela traviarca Antígona no lugar do vidente Tirésias, e a Divina Valéria, parte do Coro, como o duplo de Ismene, temerosa das graves consequências de contrariar Creonte.

VALÉRIA – Irão nos apanhar na ilegalidade.

ANTÍGONA – Mas na infidelidade é que não irão nos apanhar.

Numa invocação preparatória para a iminente passeata com cartazes, Antígona chama Baco e as bacantes em oportuna celebração às origens do teatro.

Se forem necessárias algumas palavras como conclusão, tenho a dizer apenas que Antígona hoje é isso. É na resistência civil que reside sua atualidade. Ela não morre.


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