CONTOS IMORAIS – Parte 1: Casa Mãe (MITsp 2020)
Tema: deusa Atena
Performance e cenografia: Phia Ménard
Dramaturgia e direção: Phia Ménard e Jean-Luc Beaujault
Música e ambientação sonora: Ivan Roussel
Figurino: Fabrice Ilia Leroy
Produção executiva: Compagnie Non Nova
Coprodução: documenta 14 – Kassel e Le Carré, Scène Nationale e Centre D’Art Contemporain do Château-Gontier
Temporada: 06.03 a 08.03.20
Duração: 90 min.
Assistido em: 06.03.20
SINOPSE
O espetáculo foi concebido para a 14ª edição da Documenta de Kassel, realizada em 2017 entre as cidades de Kassel, sede da exposição de arte contemporânea, e Atenas. Partindo dos temas levantados pela mostra – a descentralização da arte, os conceitos de centro e periferia, o papel do artista num mundo em conflito -, a francesa Phia Ménard reflete sobre a identidade e os problemas da Europa de hoje, fazendo um paralelo entre as duas cidades: a alemã Kassel, no “rico norte” europeu, e a grega Atenas, imersa em crises. Sobre o palco, vestida como uma deusa grega futurista, ela se põe a construir uma estrutura de papelão, simples e frágil. Ela remonta ao Plano Marshall (que pretendia reerguer a Europa do pós-guerra), fazendo gestos repetitivos e robóticos nesse esforço de criar uma casa para o continente e seus desabrigados, seus refugiados. (Divulgação MITsp)
ENTREVISTA
Após sua primeira apresentação na MITsp, a artista falou com o público, no âmbito da atividade “Pensamento-em-processo”. Os pontos principais:
A ideia por trás da obra:
“Existe a imagem de Atenas como início do conceito de República e da democracia, como se houvesse uma ligação direta entre nós e a Grécia antiga, mas essa é uma representação da história”.
“Em Kassel, viveram os Irmãos Grimm, autores de contos. Comecei a pensar em uma série de contos e resolvi escrever três: Casa Mãe, Templo Pai, O Encontro Proibido”.
A humanidade é uma casa de papelão:
“Quando decidi escrever Casa Mãe, em 2017, estava em Atenas. Pensei que se poderia fornecer casas de papelão aos refugiados, feitas pela IKEA [famosa marca europeia de móveis e acessórios para a casa], já que nunca chove na Grécia”.
“Mas a metáfora vai além: construir a humanidade foi muito longo e destruí-la foi fácil. E vemos ela se destruir. Por isso, olho para vocês no final, porque vocês preferem ver o mundo se destruir”.
A transição no palco:
“Como artista do teatro posso trabalhar esse espaço para pensar na transição [do masculino para o feminino], por isso escolhi trabalhar um material que faz também a transição”.
“As pessoas têm alguma relação física com a chuva. Não importa de que país, todos têm relação com a chuva. Posso dialogar com esse material. O papelão também. Em todo lugar ele existe e alguém o tocou”.
A personagem Atena Punk:
“É uma mulher no mundo patriarcal que toma o poder, que recusa, que não quer mais ser violentada, mas que faz o que toda mulher faz: faz funcionar a humanidade”.
“Ela tem uma máscara, talvez como o Zorro, talvez como Pris [do filme Blade Runner]: ela é uma replicante e ela sabe que para viver tem que derrubar o patriarcado. É uma Atena, é uma feminista, porque ser mulher já é ser feminista”.
COMENTÁRIO
Quando o espetáculo não tem falas, costuma acontecer o que chamo de “tosse nervosa” na plateia – uma tossezinha breve e seca, um pigarrear, que parece contagioso (ainda mais em tempos de novo vírus!). Depois, com o espetáculo em andamento, tende a aparecer o que chamo de “riso fácil” – um esboço de riso, forçando a descontração diante do silêncio tenso.
Uma e outro deram sinais na performance de “Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe”, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), nesta sexta-feira. Mas, a partir do momento que chove no palco, tudo isso acaba. Fica a expectativa, silenciosa, abafada pela água que cai torrencialmente.
Pensando bem, são dois momentos mesmo muito distintos na relação entre cena e plateia. Primeiro, temos um palco vazio, exceto pela presença distante, longe do proscênio, da protagonista não nomeada: uma Atena Punk, uma replicante (ler Entrevista acima). O que se desenrola, em seguida, é um processo, não uma representação exatamente. Uma mulher com poderes – divinos ou heroicos – ergue do chão um templo de papelão. É a casa de Atena, o Parthenon.
Sim, aqui há algo de humor, que se deixa entrever em alguns gestos e que ficou mais claro depois, quando a atriz explicou que explora o preconceito de que as mulheres não têm visão espacial: a protagonista está seguindo mal as orientações de montagem da casa de papelão, erguendo-a como uma tartaruga com o casco para baixo, pernas pra cima.
Vencidos os obstáculos, posta a casa de pé, vem o segundo momento. A destruição fácil da construção difícil. Basta a chuva. E chove muito no palco até desfazer o edifício. Agora, a artista é espectadora também, tanto da derrocada como da plateia (ler Entrevista acima). Sim, aqui a poeticidade toma tudo: tanto esforço, e isso?! Phia Ménard foi muito aplaudida, ainda que uma ou outra pessoa tenha saído do teatro antes do final.
Pensando na dramaturgia do palco, temos o processo de construção do principal objeto cênico: a casa de papelão. O que a performer faz é construir no palco o cenário que será destruído pelo acionamento de um mecanismo do próprio teatro: é o que se chama de teatro falando de teatro, o metateatral.
Pensando na abordagem temática, “o problema europeu”, digamos, dos refugiados é abordado apenas do ponto de vista ocidental: a inabilidade do chamado “berço da democracia” de lidar com aquele contingente de pessoas, que não está representado no palco, talvez aludido.
Pensando na ação performática, parece haver uma confrontação entre o feminino e o masculino que se realiza no corpo e nos movimentos de Phia Ménard, artista trans. O figurino, evocativo da personagem Pris do filme Blade Runner (ler Entrevista acima), rivaliza com o andar e o gestual brutos dessa Atena Punk que, a certa altura, carrega sobre o ombro uma serra elétrica (alusão cinematográfica irônica?).
Maison Mère (Casa Mãe) é a primeira parte de um tríptico, incluindo Temple Père (Templo Pai) e La Rencontre Interdite (O Encontro Proibido), nenhum destes dois contos ainda encenado. A singularidade da performance do primeiro conto me faz querer ver os seguintes com grande expectativa. Quem sabe em MITs futuras. Por ora, ficam alguns momentos que fotografei.
Renata Cazarini