TEATRO DO TOQUE OU O URSINHO DE PELÚCIA – EXPERIÊNCIA GRUPO GALPÃO – (UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA com base no livro de José Saramago

 

Direção e Dramaturgia: Rodrigo Portella
Direção musical, trilha original e paisagem sonora: Federico Puppi 
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones
Temporada: 20 nov.2025-14 dez.2025
Local: Sesc 24 de maio
Experiência em 20 nov. 2025

Sinopse da experiência

Inclui participação guiada pelo elenco, com locomoção no palco, de olhos vendados, durante cerca de 60 minutos da peça. O primeiro ato a pessoa assiste o espetáculo da plateia e, o segundo ato, vendada em cima do palco. 14 pessoas participam da experiência. É necessário chegar com 30 minutos de antecedência para orientações — atrasos inviabilizam a participação, mas o espetáculo poderá ser assistido normalmente. Use roupas e calçados confortáveis. A experiência aborda temas sensíveis e inclui indicação de violência sexual. Ao participar, você autoriza o uso de sua imagem pelo Grupo Galpão mediante assinatura de termo. (divulgação)

Comentário

Quando teatro não é ver, mas tocar? Quando você participa da experiência de não ver a peça que se passa à sua volta. A privação temporária da visão numa situação de confinamento no palco ocupado pelo Grupo Galpão no Sesc 24 de maio com a peça “(Um) Ensaio sobre a cegueira” dispõe os sentidos de maneira diversa do habitual. Não se trata de “experimentar” a deficiência visual. É outra coisa. Evito até usar o adjetivo “tátil” para não confundir o teatro com recursos de acessibilidade e a experiência de imersão guiada pelo elenco.

Somos nós, voluntários na “cegueira”, que vivemos pelos atuantes do Galpão a condição que eles mesmos não podem porque têm de ver a plateia, se movimentar nas marcações do palco e nos guiar. Não podem ficar às cegas – e não há trocadilho aqui. Já nós, 14 pessoas vendadas pra valer, nos agarramos ao pouco que eles nos dão: um toque no ombro, uma mão que guia, um sussurro ao pé do ouvido.

Nada de novo em dizer que teatro é o corpo que se apresenta ao espectador, no entanto, a corporeidade teatral não é o mesmo que a interação física. A experiência com o Galpão é sobre elementos táteis que se apresentam aos espectadores na interação que acontece no palco quando habitamos aquele cenário. Há uma preparação desse “espectador privilegiado”, mas nada que aumente nossa competência como, digamos, cocriadores do espetáculo, no máximo, incrementa nossa consciência do que que está por vir.

Meia-hora antes da peça começar recebemos instruções sobre como funciona o jogo cênico. Devemos cumprir o que nos mandam fazer no palco, não há improvisação, embora seja no improviso: por exemplo, eu não sabia que iria compor o Coro dos libertados do manicômio no final. O grupo de “experenciadores” é dividido entre cartões vermelhos e verdes. Assistimos a boa parte da encenação sentados na plateia até que os vermelhos são convocados e só um tempo depois os verdes. Eu era verde, então já tinha noção do que poderia acontecer. Sorte minha.

A experiência de estar no manicômio que aloja as vítimas da epidemia de cegueira branca tem início justamente com um dos atuantes amarrando as vendas sobre meus olhos. Esse contato inicial estabelece de imediato a dependência em relação a outro(s). Daqui pra frente a espectadora é guiada pelo toque no ombro, no braço, na mão. Outros elementos entram no jogo. No meu caso, depois de ganhar um colchonete próprio na Ala 2 do manicômio, recobriram minhas costas com um grande xale. Pouco depois, puseram em minhas mãos um urso de pelúcia. Quem? Não sei. Abençoado seja!

É muita coisa que acontece na peça enquanto não vejo nada – e é a parte pesada. O ursinho me salvou. Me agarrei a ele e persisti. Quanto tempo, não sei. Só sei que saímos, outras mulheres e eu, do palco para a coxia, guiadas pelas atrizes. Eu ainda tinha o ursinho na mão. Dali, sem as vendas, voltamos ao palco instruídas agora sobre como banharmos o cadáver da mulher vítima de estupro: lenta e suavemente. Uma participante ao meu lado chorou. Agora, nos vendamos novamente e todos tilintamos – homens e mulheres – no painel de metal no fundo do palco. A instrução: com as pontas dos dedos.

Fiz várias leituras nos últimos três dias, ou seja, desde a minha experiência com o Galpão, sobre o chamado “ato produtivo do espectador” (DESGRANGES). Essa montagem do Galpão parece ser um corpus ótimo para esse campo de estudos, já que há “classes” diferentes de espectadores: os vermelhos, os verdes e os que veem. Sendo pesquisadora dos Estudos de Recepção dos Clássicos, endosso que o evento teatral não se efetiva sem o ato criativo do espectador na recepção, até como um gesto artístico. Mas – sério – não sei ainda o que essa experiência faz do espectador, ou melhor, fez de mim como espectadora. Pareço ainda inconsciente dos meus próprios processos receptivos.

Leituras

DE MARINIS, Marco. Corpo e Corporeidade no Teatro: da semiótica às neurociências. Pequeno glossário interdisciplinar. Presença, Porto Alegre, v. 2, n.1, p. 42-61, jan./jun. 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237-266024243 Acesso em: 22/11/2025.

DE MARINIS, Marco. Dramaturgy of the Spectator. Trad. Paul Dwyer.  The Drama Review, v. 31, n. 2, p. 100-114, Summer, 1987. Acesso restrito: http://www.jstor.org/stable/1145819 Acesso em: 22/11/2025.

DESGRANGES, Flávio. Instâncias da relação entre teatro e público: o espectador como participante do ato teatral. Urdimento, v. 3, n. 36, p. 85-95, nov/dez 2019. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/15771/10872 Acesso em: 22/11/2025.

DESGRANGES, Flávio. Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador. Sala Preta (USP), v.8, n.1, p. 11-19, 2008. Disponível em: https://revistas.usp.br/salapreta/article/view/57346 Acesso em: 22/11/2025.

PEREIRA, Ohanna. O espectador na cena contemporânea: noções dos conceitos de Lehmann, Rancière e Desgranges. Sinais de Cena, 3ª série, n. 1, p. 75–86, 2022. Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/sdc/article/view/28947 Acesso em: 22/11/2025.

ROCHA, Fernanda Marilia Gomes; MASSA, Clóvis Dias. Navegar o teatro contemporâneo: uma experiência da frustração à autonomia. Revista da FUNDARTE, Fundação Municipal de Artes de Montenegro, v. 38, n. 38, ano 19, p. 33-45, abril/junho, 2019. Disponível em: https://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/article/view/521 Acesso em: 22/11/2025.

RODRIGUES, Cristiano Cezarino. O campo ampliado da teatralidade performativa na cenografia contemporânea. O Percevejo Online (Unirio), v. 8, n. 1, p. 90-102, jan./jun. 2016. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/server/api/core/bitstreams/776c5a1e-bf9a-438b-a134-d2b120004223/content Acesso em: 22/11/2025.

Comentários