TEATRO DO TOQUE OU O URSINHO DE PELÚCIA – EXPERIÊNCIA GRUPO GALPÃO – (UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA com base no livro de José Saramago
Sinopse da experiência
Inclui participação guiada
pelo elenco, com locomoção no palco, de olhos vendados, durante cerca de 60
minutos da peça. O primeiro ato a pessoa assiste o espetáculo da plateia e, o
segundo ato, vendada em cima do palco. 14 pessoas participam da experiência. É
necessário chegar com 30 minutos de antecedência para orientações — atrasos
inviabilizam a participação, mas o espetáculo poderá ser assistido normalmente.
Use roupas e calçados confortáveis. A experiência aborda temas sensíveis e
inclui indicação de violência sexual. Ao participar, você autoriza o uso de sua
imagem pelo Grupo Galpão mediante assinatura de termo. (divulgação)
Comentário
Quando teatro não é ver,
mas tocar? Quando você participa da experiência de não ver a peça que se passa
à sua volta. A privação temporária da visão numa situação de confinamento no
palco ocupado pelo Grupo Galpão no Sesc 24 de maio com a peça “(Um) Ensaio
sobre a cegueira” dispõe os sentidos de maneira diversa do habitual. Não se
trata de “experimentar” a deficiência visual. É outra coisa. Evito até usar o
adjetivo “tátil” para não confundir o teatro com recursos de acessibilidade e a
experiência de imersão guiada pelo elenco.
Somos nós, voluntários na “cegueira”,
que vivemos pelos atuantes do Galpão a condição que eles mesmos não podem porque
têm de ver a plateia, se movimentar nas marcações do palco e nos guiar. Não
podem ficar às cegas – e não há trocadilho aqui. Já nós, 14 pessoas vendadas
pra valer, nos agarramos ao pouco que eles nos dão: um toque no ombro, uma mão
que guia, um sussurro ao pé do ouvido.
Nada de novo em dizer que
teatro é o corpo que se apresenta ao espectador, no entanto, a corporeidade
teatral não é o mesmo que a interação física. A experiência com o Galpão é
sobre elementos táteis que se apresentam aos espectadores na interação que
acontece no palco quando habitamos aquele cenário. Há uma preparação desse “espectador
privilegiado”, mas nada que aumente nossa competência como, digamos,
cocriadores do espetáculo, no máximo, incrementa nossa consciência do que que
está por vir.
Meia-hora antes da peça
começar recebemos instruções sobre como funciona o jogo cênico. Devemos cumprir
o que nos mandam fazer no palco, não há improvisação, embora seja no improviso:
por exemplo, eu não sabia que iria compor o Coro dos libertados do manicômio no
final. O grupo de “experenciadores” é dividido entre cartões vermelhos e
verdes. Assistimos a boa parte da encenação sentados na plateia até que os
vermelhos são convocados e só um tempo depois os verdes. Eu era verde, então já tinha noção do que poderia acontecer. Sorte minha.
A experiência de estar no
manicômio que aloja as vítimas da epidemia de cegueira branca tem início
justamente com um dos atuantes amarrando as vendas sobre meus olhos. Esse
contato inicial estabelece de imediato a dependência em relação a outro(s).
Daqui pra frente a espectadora é guiada pelo toque no ombro, no braço, na mão.
Outros elementos entram no jogo. No meu caso, depois de ganhar um
colchonete próprio na Ala 2 do manicômio, recobriram minhas costas com um
grande xale. Pouco depois, puseram em minhas mãos um urso de pelúcia. Quem? Não
sei. Abençoado seja!
É muita coisa que acontece
na peça enquanto não vejo nada – e é a parte pesada. O ursinho me salvou. Me
agarrei a ele e persisti. Quanto tempo, não sei. Só sei que saímos, outras
mulheres e eu, do palco para a coxia, guiadas pelas atrizes. Eu ainda tinha o
ursinho na mão. Dali, sem as vendas, voltamos ao palco instruídas agora sobre
como banharmos o cadáver da mulher vítima de estupro: lenta e suavemente. Uma
participante ao meu lado chorou. Agora, nos vendamos novamente e todos tilintamos
– homens e mulheres – no painel de metal no fundo do palco. A instrução: com as
pontas dos dedos.
Fiz várias leituras nos
últimos três dias, ou seja, desde a minha experiência com o Galpão, sobre o
chamado “ato produtivo do espectador” (DESGRANGES). Essa montagem do Galpão parece
ser um corpus ótimo para esse campo de estudos, já que há “classes”
diferentes de espectadores: os vermelhos, os verdes e os que veem. Sendo
pesquisadora dos Estudos de Recepção dos Clássicos, endosso que o evento
teatral não se efetiva sem o ato criativo do espectador na recepção, até como
um gesto artístico. Mas – sério – não sei ainda o que essa experiência faz do espectador, ou melhor, fez de mim como espectadora. Pareço ainda inconsciente dos meus próprios
processos receptivos.
Leituras
DE MARINIS, Marco.
Corpo e Corporeidade no Teatro: da semiótica às neurociências. Pequeno
glossário interdisciplinar. Presença, Porto Alegre, v. 2, n.1, p. 42-61,
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Acesso em: 22/11/2025.
DE MARINIS, Marco. Dramaturgy of the Spectator. Trad.
Paul Dwyer. The Drama Review, v. 31, n. 2, p. 100-114,
Summer, 1987. Acesso restrito: http://www.jstor.org/stable/1145819 Acesso em: 22/11/2025.
DESGRANGES,
Flávio. Instâncias da relação entre teatro e público: o espectador como
participante do ato teatral. Urdimento, v. 3, n. 36, p. 85-95, nov/dez
2019. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/15771/10872
Acesso em: 22/11/2025.
DESGRANGES,
Flávio. Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador. Sala Preta
(USP), v.8, n.1, p. 11-19, 2008. Disponível em: https://revistas.usp.br/salapreta/article/view/57346
Acesso em: 22/11/2025.
PEREIRA, Ohanna.
O espectador na cena contemporânea: noções dos conceitos de Lehmann, Rancière e
Desgranges. Sinais de Cena, 3ª série, n. 1, p. 75–86, 2022. Disponível
em: https://revistas.rcaap.pt/sdc/article/view/28947
Acesso em: 22/11/2025.
ROCHA,
Fernanda Marilia Gomes; MASSA, Clóvis Dias. Navegar o teatro contemporâneo: uma
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Disponível em: https://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/article/view/521
Acesso em: 22/11/2025.
RODRIGUES, Cristiano Cezarino. O campo ampliado da teatralidade performativa na cenografia contemporânea. O Percevejo Online (Unirio), v. 8, n. 1, p. 90-102, jan./jun. 2016. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/server/api/core/bitstreams/776c5a1e-bf9a-438b-a134-d2b120004223/content Acesso em: 22/11/2025.

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