KIDLAT TAHIMIK: Killing us softly… with their S.P.A.M.S. (songs, prayers, alphabets, movies, superheroes)

foto de 11/11/2023
35ª Bienal de São Paulo
Coreografias do impossível
6 setembro - 10 dezembro
São Paulo

A melhor síntese do que seja a recepção crítica de clássicos eu vi na Bienal de arte de São Paulo deste ano. Não foi no cinema, nem no teatro, nem nos quadrinhos. A instalação do multiartista filipino Kidlat Tahimik, comissionada pelo coletivo de curadoria desta edição, tem cerca de 300 metros quadrados e chega a 7 metros de altura em alguns pontos. Está no andar térreo do pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, com entrada gratuita – você pode ir uma vez e de novo e de novo. Merece. Até agora, estive ali duas vezes.

foto de 11/11/2023

A dimensão “monumental”, como aparece no audioguia da exposição, e a centralidade no saguão de entrada certamente são fatores impactantes, porém, ainda mais do que isso, o espaço demanda do visitante o trânsito entre as várias composições que constroem o conjunto, cujo título em português seria: “Matando-nos aos poucos... com seus Spams (canções, preces, alfabetos, filmes, super-heróis)”. É claro que, em inglês, as armas de massacre cultural criam o anagrama tão conhecido no mundo das mensagens eletrônicas. E, sim, a primeira parte do título em inglês refere-se à canção “Killing me softly with his song”.

Quem pesquisa os clássicos da Antiguidade nem precisa de explicação nenhuma sobre a obra como um todo quando se depara com o cavalo de madeira de onde escapam uns homens-aranha – trata-se, sem dúvida, da confrontação do imaginário coletivo do que seja um super-herói, ontem e hoje. A infantilização associada aos heróis da Marvel e da DC Comics tomando Hollywood de assalto nem é assunto novo, convenhamos. Leia aqui um comentário atento sobre alguns desses filmes.

foto de 11/11/2023

Kidlat Tahimik é um cineasta independente de impacto social, inserido no chamado “Tercer Cine”, um movimento anticapitalista. Alguns de seus filmes foram exibidos na 35ª Bienal, só que não deu pra eu assistir – e lamento muito. Seu primeiro filme, Perfumed Nightmare (1977),  recebeu o Prêmio Internacional dos Críticos (Berlim, Alemanha) e está em exibição no Mube (esse eu vi). A cabeça desse artista parece voltada sempre ao cinema. Circulando por entre a instalação da Bienal, a gente vê Mickey e vê Marilyn Monroe. Mas isso já tinha acontecido na instalação comissionada para o Museo Reina Sofía, de Madri, à época em que o dirigia o hoje cocurador da mostra de São Paulo Manuel Borja-Villel, a quem se atribui ter feito “profunda releitura da coleção do museu” (Guia da 35ª Bienal, p. 266). Sugiro ler esta crítica do portal de artes Hyperallergic: o povo ali escreve muito bem. Em inglês.

Kidlat na Espanha em 2021

Falar da obra desse filipino de 81 anos é tratar do Brasil de hoje e das frágeis negociações sociais ainda em andamento no século XXI para o tardio reconhecimento das nossas identidades étnicas e culturais mais legítimas. E isso importa muito para quem trabalha com a cultura clássica, a greco-romana. Já é tempo de admitir que ela é formadora do imaginário ocidental por vias opressoras. Isso não quer dizer jogar tudo fora, mas abordar essa matriz com olhos severamente críticos, sem ingênuas idealizações, reconfigurando a dimensão que lhe caberia sem a colonização e o colonialismo.

Numa curta entrevista em vídeo, Kidlat, que tem nome de batismo Eric Oteyza de Guia, afirma que o tema de sua obra são “400 anos de influências culturais talvez indigestas” nas Filipinas. Citando intelectuais locais, o artista desafia e reage à sua educação formal anglófona. A escritora filipina Carmen Guerrero Nakpil dizia, segundo Kidlat, que “as Filipinas viveram 300 anos num convento e 50 anos em Hollywood”. E o escultor Lopez Na-Uyac cunhou o termo “indi-genius”, numa pronúncia alterada do termo inglês “indigenous”, para salientar as habilidades do povo filipino: “nosso indi-genius é nosso ingrediente secreto da sobrevivência”, diz Kidlat, autor da colagem digital abaixo.

É assim também que o Brasil vai reconhecendo, não propriamente descobrindo, aos poucos a mitologia e a filosofia dos povos originários, bem como sua cultura oral e sua literatura. Na instalação da 35ª Bienal, Kidlat resgata o mito de Igpupiara, do Brasil, e sua contraparte filipina Syokoy. De etimologia tupi, y-pypiára significa “o que vive dentro da água”. Veja, na comparação destes dois breves textos sobre o mito brasileiro, como são ainda tortuosos os caminhos de reconhecimento da nossa mitologia autóctone. Prefeitura de Belém, capital do Pará x Prefeitura de São Vicente, no litoral paulista. 

Ilustração de Igpupiara em livro de 1576

Como Carles Guerra, artista e pesquisador independente, escreve no guia da Bienal, no choque entre culturas de Kidlat, “personalidades históricas mesclam-se a personagens científicas, promovendo um colapso no tempo, nos períodos consolidados e em geografias distantes” (Guia da 35ª Bienal, p. 141). 

foto de 11/11/2023

Daí vê-se o ícone hollywoodiano Marilyn Monroe intimidado pela deusa do vento Inhabian, elemento da cultura ifugao, grupo étnico do norte das Filipinas que resistiu à colonização espanhola (1565-1898). O contato com o homem europeu aconteceu em 1521, durante a circum-navegação do português Fernão de Magalhães, contratado pela coroa espanhola, retratada criticamente na instalação. Entre 1898 e 1946, as Filipinas ficaram sob domínio norte-americano. O país tem hoje como línguas oficiais ainda o espanhol, o filipino (talago) e o inglês (English), mas ocorre também uma forma de expressão mista, chamada taglish ou englog. Outras Marilyn e Inhabian já haviam sido expostas antes, incluindo um concurso de MissUniverso nas Filipinas.

 

Kidlat e a exposição na Filipinas em 2017

Combinadas com o Mickey Vader, um híbrido do personagem de animação com o aterrador Darth Vader de Star Wars, portando uma serra elétrica, de fato, toda a instalação parece nos instigar como se fosse um parque temático intercultural ou “um ferro-velho legado por todos os regimes imperiais”, ainda na visão aguçada de Carles Guerra (Guia da 35ª Bienal, p. 141). 

foto de 11/11/2023

E, finalmente, volto ao Cavalo de Troia, confeccionado em madeira com pernas de bambu em rodinhas e engrenagens mecânicas na cabeça, de onde saem não guerreiros gregos, mas super-heróis de Hollywood. 

foto de 11/11/2023

Até iniciar a pesquisa pra compor este post, eu não havia me dado conta da presença das figuras estrategicamente posicionadas ante o cavalo. 

foto de 11/11/2023

São pequenos Bulols, representação do deus do arroz, cultivo importante do povo ifugao, esculpidos em madeira como entidades protetoras. Mas esse conhecimento tão relevante só chegou a mim por uma reportagem sobre estilo de vida na Vogue filipina (!!!), onde Kidlat declara: “Temos que proteger a contação de histórias de tal forma que Darth Vader e o Capitão América e todos os outros super-heróis de Hollywood não matem nossas histórias”.




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