TEATRO: No banheiro com Antígona

Foto tirada em 6/10/2023 por Adriane da Silva Duarte



Dramaturgia: Facundo Zilberberg e Verónica Llinás
Direção: Laura Paredes e Verónica Llinás
Elenco: Verónica Llinás, Esteban Lamothe e Héctor Díaz
Cenografia: Julieta Ascar
Figurino: Sofía Di Nunzio
Iluminação: Eli Sirlin
Teatro Astral - Corrientes 1639 - Buenos Aires
Duração:  70 minutos
Assistido em 06 out.23

Adriane da Silva Duarte*
Colaboradora

Em recente visita a Buenos Aires fui conferir uma montagem de título sugestivo, Antígona en el baño. Antes de falar da peça propriamente, tenho de registrar minha surpresa com a Broadway portenha de Corrientes. Três quarteirões abrigam uma quantidade de teatros enormes, que ostentam letreiros luminosos e atraem um público grande e animado – ao menos foi essa a minha impressão nas duas noites que passei por lá. Em São Paulo, não temos nada parecido.

A peça está em cartaz no Teatro Astral, um dos gigantes da avenida, com capacidade para cerca de mil pessoas (foto abaixo). Na noite que lá estive (6/10/23), pouco mais de um mês desde a estreia (1/9/23), havia cerca de 70% de ocupação. Isso já dá uma pista de que tipo de espetáculo esperar, bem inserido que está no circuito comercial buenairense. O título é a melhor coisa dessa peça, que apela para a popularidade de atores conhecidos e para um humor calcado em estereótipos, palavrões e caras e bocas no melhor estilo Vai que Cola – para quem não sabe, um programa humorístico da TV paga brasileira. Mas suspeito que quanto mais escrever sobre ela, mais interessante vá parecer, porque a ideia em si é boa.

Antígona en el baño é uma comédia centrada em uma popular atriz de televisão, já “entrada em anos”, que resolve dar uma envernizada no currículo montando um clássico do teatro, algo não muito raro de se ver por aí. Acontece que Ignacia conhece superficialmente as tragédias de Sófocles, que leu em resumo na internet, e não tem o physique du rôle para o papel. O diretor consagrado, contratado para dar prestígio à produção, sugere que ela está mais para Jocasta, a mãe, do que para Antígona, ao que ela responde que, houvesse uma tragédia com esse nome (Jocasta), ela a faria, mas nunca se rebaixaria ao papel coadjuvante em Édipo. Assim, o que deveria ser um ponto alto em sua carreira, torna-se um verdadeiro tormento, já que ela não consegue decorar as falas, tropeça nos nomes dos personagens (Policlínico por Polinices, por exemplo), se acha ridícula no figurino proposto. Enfim, é tomada por uma crise pânica que a impede de sair do banheiro para ir ao teatro na noite da estreia. Trágico, não?

A peça começa com apenas o rosto da atriz iluminado contra um fundo escuro, enquanto ela declama o célebre monólogo final da Antígona, em que a personagem se despede da vida a caminho da cova em que será encerrada. Porém a falha em pronunciar Perséfone a desconcerta, ao mesmo tempo em que a luz se acende e percebemos que o que havíamos tomado por uma túnica grega era uma toalha e que a personagem está num cafona banheiro cor de rosa, cenário único do espetáculo.

Não demora, Junior, seu jovem secretário, vem apressá-la, pois já reservara o táxi para o teatro. Inexperiente e incapaz de lidar com a crise de Ignacia, ele apela para Bas, o seu psicólogo, autodeclarado “coach ontológico”, especializado em “paisagismo mental” – e essa sátira dos tratamentos alternativos que abundam entre os hermanos, mas também não são incomuns aqui, é o que há de mais engraçado na peça. A partir daí são três no banheiro: uma Ignacia prima-dona entre arrogante e frágil, um Junior exasperado e o coach lançando mão de todas as dinâmicas para fazer a atriz superar seu bloqueio a tempo da estreia, já cancelada duas vezes.

Foto de divulgação

A divulgação do espetáculo faz questão de marcar que se trata de uma comédia, gênero com o qual a protagonista, Verónica Llinás, está bem identificada. Para não deixar dúvida de que a menção a Antígona no título não era promessa de uma noite lúgubre, os cartazes diante do teatro anunciavam: “Una tragedia comedia para morir de rir” (assim mesmo, com “tragédia” rasurado e “comédia” em vermelho), ao lado de uma fotografia dos atores seminus atrás de uma cortina de box (cf. abaixo, junto da Ficha técnica). E, de fato, é uma comédia de caracteres, que explora os traços caricaturais dos personagens. A Antígona no título é um chamariz para um determinado público (eu, por exemplo) que busca algo supostamente mais profundo, projetando o cotidiano em paradigmas clássicos. Até o ponto em que chegamos, obviamente, não é nada disso, e no lugar da peça de Sófocles poderíamos ter uma outra qualquer, desde que canônica e protagonizada por uma mulher (Medeia, Macbeth, Fedra, por exemplo). Mas uma peripécia muda essa percepção.

Numa cena entre Bas e Ignacia (Junior sai de cena), vem à tona um trauma do passado que aclara a crise presente. A atriz, em nome de sua carreira, teve um filho em segredo e o entregou para adoção. É um tema romanesco, mas igualmente trágico, sensível numa Argentina que ainda acerta contas com uma ditadura selvagem que tinha entre seus métodos subtrair crianças de seus pais presos e “desaparecidos” e entregá-los aos cuidados de outros. Conseguir expressar isso não resolve o problema, mas devolve ímpeto vital a Ignacia, que, em seguida, assume sua atração por Junior. Sim, sim, sim, acho que vocês já adivinharam, mas se não quiserem spoilers, devem pular os dois próximos parágrafos e ir direto para o final.

Trancados no banheiro (Bas sai de cena), Ignacia e Junior se atracam – não vou entrar em detalhes, já que todo o mise-en-scène é bem constrangedor, não pelo conteúdo sexual, mas pela apelação um tanto grosseira. Apagam-se as luzes, consuma-se o ato. De volta, vemos uma Ignacia feliz e um Junior adormecido na banheira. Bas retorna para recolher seus instrumentos de trabalho e devolve à atriz um objeto (cf. foto abaixo; um falo?) que levaria ao reconhecimento do filho perdido, um gnorísmata. Nesse momento, Junior desperta e, claro, reconhece o objeto, pois guarda um igual. Tragédia! Antígona vira de fato Jocasta.

Foto de divulgação

Trata-se, no entanto, de uma comédia. Após uma certa perplexidade, Ignacia tenta consolar Junior no melhor estilo de Oosgod (Joe E. Brown) para Daphne (Jack Lemmon) no antológico final de Quanto mais quente melhor (Billy Wilder, 1959), quando descobre que sua noiva é um homem travestido: “Ninguém é perfeito!” Tá, a cena não está à altura do filme, mas o espírito é esse, não deixar que a tragédia contamine a alegria de viver. E, claro, é tudo tão estereotipado que os espectadores não acreditam de verdade que houve incesto. É só mais uma gag para arrancar gargalhadas – e elas vêm em profusão. A promessa é “morrer de rir”, certo? O fato é que essa experiência pessoal do aspecto trágico da existência faz com que Ignacia consiga finalmente se apropriar da tragédia e declamar o monólogo de Antígona.

Antígona en el baño tem a digital de Verónica Llinás no projeto. Ela protagoniza, dirige, em colaboração com Laura Paredes, e assina a dramaturgia com Facundo Zilberberg. Esse último dado é interessante. A peça de Facundo, chamada originalmente Antígona sensual (publicada em livro a que não tive acesso), teve leitura dramática em circuito independente em 2020 (é possível vislumbrar umas cenas, já com o banheiro rosa, em teaser do youtube). Em entrevista, Liinás diz que o texto é de Zilberberg e que ela o adaptou. Seria interessante ver como se deu esse processo e as diferenças resultantes.

Cabe perguntar o que a presença das tragédias gregas nessa comédia argentina metateatral sinaliza. A peça recebeu boa recepção crítica, muitos apontando o fato de chamar atenção para aspectos que afetam a carreira das atrizes, que não podem envelhecer ou exercer de forma plena a maternidade. Mas não foram poucos veículos de imprensa que viram a peça como uma releitura da Antígona sofocleana: “La pieza se trata de una adaptación ingeniosa y moderna del clásico griego de Sófocles”; “[...] es una obra teatral que ofrece una visión contemporánea y audaz de la tragedia clásica griega "Antígona" de Sófocles”; “Antígona en el baño. Sófocles siglo XXI / una relectura con gracia y originalidad respecto de aquella tragedia griega que los estudiosos recuerdan constantemente”.

De forma mais sóbria, Mercedes Mendez (La Nación, 18/09/2023) vê “uma piscadela para as adaptações modernas de textos clássicos, que zombam de tudo”. Talvez... Mas de forma ainda mais conservadora penso que, se é possível tirar alguma conclusão, é a da permanência do trágico que permeia a experiência do mundo moderno, assim como a do mundo antigo – Ignacia revive Jocasta. Há também o fato de que os clássicos ainda são vistos como signos de prestígio intelectual, já que Ignacia só os conhece pela internet, mas se sente compelida a encenar uma tragédia grega para ser reconhecida, enfim, como uma grande atriz.

* Adriane da Silva Duarte é professora titular na Universidade de São Paulo (USP)

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