TEATRO: No banheiro com Antígona
Não demora, Junior, seu jovem secretário,
vem apressá-la, pois já reservara o táxi para o teatro. Inexperiente e incapaz de
lidar com a crise de Ignacia, ele apela para Bas, o seu psicólogo,
autodeclarado “coach ontológico”, especializado em “paisagismo mental” – e essa
sátira dos tratamentos alternativos que abundam entre os hermanos, mas também
não são incomuns aqui, é o que há de mais engraçado na peça. A partir daí são
três no banheiro: uma Ignacia prima-dona entre arrogante e frágil, um Junior
exasperado e o coach lançando mão de todas as dinâmicas para fazer a atriz
superar seu bloqueio a tempo da estreia, já cancelada duas vezes.
Foto de divulgação |
A divulgação do espetáculo faz
questão de marcar que se trata de uma comédia, gênero com o qual a
protagonista, Verónica Llinás, está bem identificada. Para não deixar dúvida de
que a menção a Antígona no título não era promessa de uma noite lúgubre,
os cartazes diante do teatro anunciavam: “Una tragedia comedia para morir de rir” (assim mesmo, com “tragédia”
rasurado e “comédia” em vermelho), ao lado de uma fotografia dos atores seminus
atrás de uma cortina de box (cf. abaixo, junto da Ficha técnica). E, de fato, é
uma comédia de caracteres, que explora os traços caricaturais dos personagens. A
Antígona no título é um chamariz para um determinado público (eu, por exemplo)
que busca algo supostamente mais profundo, projetando o cotidiano em paradigmas
clássicos. Até o ponto em que chegamos, obviamente, não é nada disso, e no
lugar da peça de Sófocles poderíamos ter uma outra qualquer, desde que canônica
e protagonizada por uma mulher (Medeia, Macbeth, Fedra, por exemplo). Mas uma
peripécia muda essa percepção.
Numa cena
entre Bas e Ignacia (Junior sai de cena), vem à tona um trauma do passado que aclara
a crise presente. A atriz, em nome de sua carreira, teve um filho em segredo e
o entregou para adoção. É um tema romanesco, mas igualmente trágico, sensível
numa Argentina que ainda acerta contas com uma ditadura selvagem que tinha
entre seus métodos subtrair crianças de seus pais presos e “desaparecidos” e
entregá-los aos cuidados de outros. Conseguir expressar isso não resolve o
problema, mas devolve ímpeto vital a Ignacia, que, em seguida, assume sua
atração por Junior. Sim, sim, sim, acho que vocês já adivinharam, mas se não
quiserem spoilers, devem pular os dois próximos parágrafos e ir direto
para o final.
Trancados
no banheiro (Bas sai de cena), Ignacia e Junior se atracam – não vou entrar em
detalhes, já que todo o mise-en-scène é bem constrangedor, não pelo
conteúdo sexual, mas pela apelação um tanto grosseira. Apagam-se as luzes,
consuma-se o ato. De volta, vemos uma Ignacia feliz e um Junior adormecido na
banheira. Bas retorna para recolher seus instrumentos de trabalho e devolve à
atriz um objeto (cf. foto abaixo; um falo?) que levaria ao reconhecimento do
filho perdido, um gnorísmata. Nesse momento, Junior desperta e, claro,
reconhece o objeto, pois guarda um igual. Tragédia! Antígona vira de fato Jocasta.
Foto de divulgação |
Trata-se, no entanto, de uma comédia. Após uma certa perplexidade, Ignacia tenta consolar Junior no melhor estilo de Oosgod (Joe E. Brown) para Daphne (Jack Lemmon) no antológico final de Quanto mais quente melhor (Billy Wilder, 1959), quando descobre que sua noiva é um homem travestido: “Ninguém é perfeito!” Tá, a cena não está à altura do filme, mas o espírito é esse, não deixar que a tragédia contamine a alegria de viver. E, claro, é tudo tão estereotipado que os espectadores não acreditam de verdade que houve incesto. É só mais uma gag para arrancar gargalhadas – e elas vêm em profusão. A promessa é “morrer de rir”, certo? O fato é que essa experiência pessoal do aspecto trágico da existência faz com que Ignacia consiga finalmente se apropriar da tragédia e declamar o monólogo de Antígona.
Antígona en el baño tem a digital de Verónica Llinás no projeto. Ela
protagoniza, dirige, em colaboração com Laura Paredes, e assina a dramaturgia
com Facundo Zilberberg. Esse último dado é interessante. A peça de Facundo, chamada
originalmente Antígona sensual (publicada em livro a que não tive
acesso),
teve leitura dramática em circuito independente em 2020 (é possível vislumbrar
umas cenas, já com o banheiro rosa, em teaser do youtube).
Em entrevista, Liinás diz que o texto é de Zilberberg e que ela o adaptou.
Seria interessante ver como se deu esse processo e as diferenças resultantes.
Cabe perguntar o que a presença das tragédias gregas nessa comédia argentina metateatral sinaliza. A peça recebeu boa recepção crítica, muitos apontando o fato de chamar atenção para aspectos que afetam a carreira das atrizes, que não podem envelhecer ou exercer de forma plena a maternidade. Mas não foram poucos veículos de imprensa que viram a peça como uma releitura da Antígona sofocleana: “La pieza se trata de una adaptación ingeniosa y moderna del clásico griego de Sófocles”; “[...] es una obra teatral que ofrece una visión contemporánea y audaz de la tragedia clásica griega "Antígona" de Sófocles”; “Antígona en el baño. Sófocles siglo XXI / una relectura con gracia y originalidad respecto de aquella tragedia griega que los estudiosos recuerdan constantemente”.
De forma mais sóbria, Mercedes Mendez (La Nación, 18/09/2023) vê “uma piscadela para as adaptações modernas de textos clássicos, que zombam de tudo”. Talvez... Mas de forma ainda mais conservadora penso que, se é possível tirar alguma conclusão, é a da permanência do trágico que permeia a experiência do mundo moderno, assim como a do mundo antigo – Ignacia revive Jocasta. Há também o fato de que os clássicos ainda são vistos como signos de prestígio intelectual, já que Ignacia só os conhece pela internet, mas se sente compelida a encenar uma tragédia grega para ser reconhecida, enfim, como uma grande atriz.
Parece ser uma comédia interessante, gostaria de assistir um dia.
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