A violência de uma colher de açúcar (resenha)

 

Plaquetes de Ana Martins Marques

De uma a outra ilha (Círculo de poemas, 2023)

O livro dos jardins 2ª ed. (Editora Quelônio, 2023)

Nunca antes escrevi sobre a poesia de Ana Martins Marques, mineira com formação acadêmica em literatura e mãos cheias de livros premiados. Já li esses livros. Aí saiu agora, em julho, a plaquete De uma a outra ilha, que acessa Lesbos e a poesia antiga e a vida moderna em 48 fragmentos sob as perspectivas jornalística, acadêmica e literária. 

A multiplicidade de fragmentos constrói mesmo um arquipélago e faz você transitar de uma a outra ilha. O rápido posfácio de Guilherme Gontijo Flores esbarra nessa ideia. Numa nota final, a autora admite a “apropriação” de excertos literários e de matérias jornalísticas – sem pudor, pois navega abertamente nesses mares.

A poesia fragmentária de Safo de Lesbos (séc. VI AEC) é a maré que deixa nas praias do hoje os resíduos do ontem, num movimento que mimetiza a rota dos botes de milhares de emigrantes sírios, iraquianos, afegãos que aterraram na ilha grega de Lesbos até 2020 desejosos de tornarem-se imigrantes no norte da Europa.

  • Pincei um fragmento estritamente literário à página 9:

*

Pense no que vai ficar

guardado para o futuro

talvez não os decretos

não os acordos

não os despachos

não os pedidos de asilo

não os vistos de trabalho

negados

mas trechos de um poema

displicentemente copiado

por um colegial distraído

a foto de uma pilha

de coletes salva-vidas

*

  • E um fragmento na perspectiva jornalística à página 11:

*

Em 2015

cerca de 800 mil refugiados

em sua maioria sírios e iraquianos

transitaram por Lesbos

com a esperança de chegar aos países

da Europa setentrional

 

As praias de Molinos, Eftalou

e Skala Sikamia

ficaram cobertas

de coletes salva-vidas

*

Lixão de coletes salva-vidas perto da praia de Eftalou, no norte de Lesbos. Foto de Maurício Lima

  • E um na perspectiva acadêmica à página 17:

*

Uma dificuldade

com os poemas antigos

é às vezes saber

onde começa e onde termina um poema

se um fragmento faz ou não

parte de um determinado poema

ou se é um novo poema

que não havia sido ainda encontrado

se estamos diante de dois poemas diferentes

ou de uma variação de um mesmo poema

entrar e sair de um poema

não é como entrar e sair de um país

mas antes como entrar e sair do mar

também os poemas têm fronteiras

e nem sempre é fácil atravessá-las

corônides (¬) indicam que se trata

provavelmente

do começo ou do fim do poema

um dado importante quando se está lidando

com fragmentos antigos

o único poema de Safo

com duas corônides – uma no início

e outra no fim – é o Fragmento 1 –

o hino a Afrodite –

o único considerado

um poema completo

*

A calamidade que foi o acampamento de refugiados em Lesbos, foco contemporâneo da poesia de Ana Martins Marques na plaquete, está bem relatada neste verbete da Wikipedia: Moria refugee camp (sem tradução em português).

Lesbos, a vergonha da Europa (“Lesbos, la honte de l’Europe”, Editions du Seuil, 2020) é o título do livro de Jean Ziegler (entrevista em francês), vice-presidente do comitê de especialistas que assessorou o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. 

O impacto do desejo de tantos e tantos refugiados frustrado pelas autoridades europeias sentiu-se neste ano de 2023 em Lisboa, quando Abdul Bashir foi identificado como o assassino de duas mulheres atuando na assistência social. Ele ficou viúvo no acampamento de refugiados de Moria e foi recebido legalmente em Portugal, com seus três filhos. O afegão encontra-se em prisão preventiva até julgamento.

A poeta também particulariza: Amir, Ali, Samir (p. 19). Gente real dos jornais.

Numa resenha mais extensa da plaquete, Gustavo Silveira Ribeiro diz: “Trata-se de uma inflexão social muito interessante na poesia de Ana Martins Marques”. Leia no Suplemento Pernambuco.

Cruzando a fronteira, recorto uns versos à página 29:

já estava assim
quando cheguei
o mundo
mobiliado

E emendo com o primeiro poema da plaquete O livro dos Jardins:

Também a mesa de ripa
as duas cadeiras descascadas
o velho banco de madeira
o regador
esquecido num canto
– todo o teu mobiliário
de jardim –
parecem ter nascido
aqui
e esperar apenas a primavera
para florir

Do desterrado para o enraizado, a 2ª edição (Editora Quelônio, 2023) dessa obra de 2019 apazigua. Os vários jardins (francês, inglês, japonês, jardinzinho) são esculpidos com as palavras que os comportam, bem como as flores (dente-de-leão, rosa, girassol). Resenha de Alcides Villaça sobre a 1ª edição. 

A parte I abraça 14 dos 25 poemas dessa delicada edição com capa e projeto gráfico de Sílvia Nastari: costura manual, papel artesanal, marcador com semente de camomila para plantar. Doce o poema que cerca a primeira parte (p. 23):

Mais valia, você sabe, plantar um jardim

do que escrever poemas sobre jardins.

Com o jardim você aprendeu o modo

como as coisas

anseiam ser

a concentração, a dispersão

a insistência

a alegria das novas

ocupações.

Chove sobre o jardim e você pensa:

o informe sobre as formas –

seu idioma de sintaxe retorcida

e palavras claras

– figuras

de folhagem.

Há flores de fumar

flores que devoram

insetos

flores que adornam a morte

com mais morte.

Mais valia, você sabe,

plantar um jardim.

O impossível (1945), escultura de Maria Martins.

A parte II reúne oferendas de jardins inteiros a dez poetas mulheres e à escultora Maria Martins (1894-1973), com quatro textos novos, sendo três inéditos, dentre estes, “Um jardim para Ana C.” (p. 43):

Passo horas olhando para o jardim, sua delirante geometria. Fico olhando como quem observa uma fogueira, sem poder despregar os olhos do fogo. As flores dominam a arte do segredo? Ou de fato nada têm a esconder, excessivamente produzidas (por pouco não brilham no escuro), com toda essa fertilidade enjoativa (já reparou que as flores namoram à distância?). É o diário delas, este jardim. E no entanto não são ternas, mas, antes, violentas, como (cada uma) uma colher de açúcar.

Ana Martins Marques se metamorfoseia em Ana Cristina Cesar (1952-1983) e faz brotar n’ O livro dos jardins a violência contida numa colher de açúcar. Também são violentos os inertes coletes salva-vidas empilhados nas areias. A gente lê, relê e copia essas suas linhas, Ana, pra que cheguem às praias do futuro.

Renata Cazarini

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