PANDORA, de Ana Paula Pacheco

 

PANDORA, de Ana Paula Pacheco
Fósforo (2023)

RESENHA

Eu tinha esse livro nas mãos desde 6 de maio, tinha começado e recomeçado, não porque não fosse uma escrita sedutora, que é, mas porque outras coisas vinham me atropelando. Hoje, 1º de julho, foi o dia de concluir a leitura e não poderia ficar pra depois já que ontem parece ter-se encerrado um ciclo demarcado entre as capas amarelo-alerta que embalam esta caixa de surpresas – ou jarro de Pandora. A residual esperança não se assenta no fundo dessas páginas, que são literatura de memória doída da pandemia de covid-19, contudo, como ontem se impôs ao ex-presidente Bolsonaro a inelegibilidade até 2030, nos cabe agora um resíduo de esperança.

Ana Paula Pacheco escreve um romance (vou tratar a obra assim, mas você pode questionar) para quem se identifica com a mulher (não como mulher, entenda bem) nas suas difíceis relações com o autoritarismo masculino, como são as com os personagens do coordenador, do psicanalista, do veterinário, e mais harmoniosas com as figuras femininas, em particular, Alice, a experiência homoafetiva da narradora. Não há que temer spoilers: esta obra nada tem a ver com um enredo de desenvolvimento linear até seu desfecho inesperado ou previsível. É e não é sobre Pandora, o mito da mulher agraciada com todos os dons dos deuses, daí seu nome.

A voz da narradora é a de uma professora universitária de literatura, o que a autora de RG e CPF também é, chamada Ana, ela também. E, não teve mesmo outro jeito, foi preciso colocar à página 8 um disclaimer: “Este é um livro de ficção”. Acredito que tenha sido melhor assim. Ana está em transição: não é por acaso a metamorfose que ilustra a capa (Metamorphosis of a Small Emperor Moth/Metamorfose de uma pequena mariposa-imperador, Maria Sibylla Merian, 1679). Essa transição em meio ao isolamento forçado da pandemia a leva a disposições emocionais inauditas, a casamentos com um pangolim e com um morcego, os dois depois da relação com Alice, ambos, vetores suspeitos da covid-19.

O bestialismo ou zooerastia pode ser, é claro, substituído pela interpretação metafórica. Fica a seu critério, leitora. Num caso e no outro, o nojo é matriz erótica. Os bichos que a cercam, inclusive o gato Felício, muito temperamental (por ciúmes, talvez?), são machos.

“Lembro quando me fechei com ele pela primeira vez. Um frio na barriga. Eu o tinha trazido do mercado. Paguei barato, pangolim de xepa, então não o mataram pra mim. Sou professora, ganho mal, e tinha raspado a poupança por causa de uma internação covídica. Talvez ele achasse que poupei sua vida por querer, pois se entregou de cara: grudou na minha tíbia e no perônio com o tronco e os braços. ‘O amor é impagável, baby’. Falou. Ele falou. Então eu lembrei: pingolim, o nome dele. Quase. Pera. Pinguim misturado com meninim. E com a caixa de Pandora inteira. Pangolim. Ele estava agitado, mas a coisinha dele parecia sem fluxo sanguíneo. ‘É tudo muito novo’, me disse. ‘A gente precisa repetir bastante, criar uma certa intimidade’. Foi comovente. Senti muito nojo e me apaixonei” (p.10-11).

O sufocamento decorrente da clausura é amplificado pela multiplicação de insetos que alimentam o pangolim e dos morcegos que constituem a família do “mor cego”, todos alojados no apartamento de Ana no bairro burguês de Higienópolis, na capital paulista. Chega até a parecer um canal de vida animal na TV paga. Tem um abutre também, como o do mito de Prometeu, assediando agora uma águia que busca rejuvenescer, numa tarefa de “Sísifo com asas”.

“Aproveito o feriado pátrio para escrever que o decepamento das garras foi tranquilo. No entanto, recomeço hoje a extração das penas. Os resultados esperados não foram atingidos. Não sou de desistir nem de me contentar com pouco. Recomeçarei o ciclo de renovação quantas vezes for preciso. Nem que leve anos, prefiro um trabalho bem feito a doze cirurgias de araque. Preocupa-me apenas o cheiro forte no bico. A excitação do abutre me faz desconfiar que seja necrose. Como pode um bico recém-nascido necrosar? É possível que eu recorra a um médico de confiança. Se o cheiro da morte persistir, não terei outra saída. Porém, passado o perigo, voltarei ao penhasco, arrancarei as penas, deceparei o bico, extrairei novamente as garras, que já terão crescido, cada coisa à sua vez. Quantas vezes for preciso” (p. 124-5).

E ainda que este romance não resgate intencionalmente o mito de Pandora, evoca três dezenas de personagens da cultura grega antiga, como Zeus, Ulisses, Orfeu e Eurídice, as harpias e as sereias etc. As referências à cultura clássica, a provocação acadêmica, o incipiente engajamento intelectual de Ana com a causa dos sem-teto expõem – intencionalmente, aposto – como é rarefeito o sofrimento da elite.

Renata Cazarini

P.S.

Vale dizer que Ana Paula Pacheco foi minha professora na USP, mas a resenha independe desse fator.

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