METAMORFOSES DO SR. OVÍDIO
METAMORFOSES DO SR. OVÍDIO
Julia Raiz
Há um sujeito chamado Ovídio. Com mais deferência, Sr. Ovídio. Sim, ele tem sangue do império romano e dorme com o inimigo, Augusto. “Sr. Ovídio é viciado na performance de si”, diz a poeta e tradutora @julia.raiz, na primeira frase da primeira de suas mais de 30 metamorfoses nesse livrinho de apenas 60 páginas, com imagem da capa dura de Natasha Tinet (Arte & Letra, 2022): Metamorfoses do Sr. Ovídio.
Julia Raiz (lê-se ráiz) doutorou-se em Estudos Literários na
UFPR, sob orientação de Rodrigo Tadeu Gonçalves, que assina o posfácio. Outras
publicações suas são diário: a mulher e o cavalo (Contravento,
2017), p/vc (7Letras, 2019) e cidade menor (Primata, 2020), ambas, plaquetes.
Meu envolvimento com esse livrinho lançado em junho é intenso
e estendido. Tenho carregado ele comigo na bolsa – daí o “livrinho” – para leitura
eventual depois de o ter lido por completo já mais de uma vez. É que ele é
também um enigma, um jogo dos 7 erros, um tabuleiro de xadrez. Mihi placet.*
Enquanto escrevo esta resenha, já há muito adiada, releio o livro e ouço o
podcast Raiz lendo coisas (e coloco o título em itálico como se
fosse um livro mesmo), iniciado em março de 2020, com a pandemia da covid-19.
*Do latim: “Me agrada”
O Sr. Ovídio, ficamos sabendo logo de cara, grava um podcast “pra lá de emocionante” e aprecia o diminuto como “um tipo limpo de transformação”. A palavra “metamorfoses” só aparece no título (tampouco aparece no poema em latim de Ovídio), mas nesta poesia em prosa tudo é mudança & transformação & deformação & descontrole: “Tudo que muda escapa ao nosso controle e isso é a coisa mais assustadora” (RAIZ, 2022, p. 5). E, de fato, fico atemorizada a cada nova metamorfose, elas, que vão se conectando de várias maneiras como se num perpetuum carmen* (OVÍDIO, Metamorfoses, Livro I, verso. 4).
*Do latim: “poema contínuo”
Raiz adota ao menos duas estratégias de interconexão entre as
breves metamorfoses, numeradas até XXXIII: descarta o ponto final no encerramento
de cada cena e recorre ao que se insinua como livre associação de imagens. Quem
já estudou as Metamorfoses de Ovídio sabe como é questionada a unidade
do poema de 12 mil versos, que tem início como uma cosmogonia e se consolida
como uma etiologia, ou seja, apresenta explicações mitológicas para a origem
das coisas, como a ninfa Daphne que se transforma em árvore e dá origem ao loureiro
(Met. I, 452-567) ou a jovem tecelã Aracne metamorfoseada na primeira aranha
(Met. VI, 1-145)
Nessa recepção brasileira à obra clássica, é o Sr. Ovídio que precisa “travar uma batalha para se manter humano” e não se transmutar numa centolla (V), “algo muito terno por dentro com uma rígida casca de distância por fora” (RAIZ, 2022, p. 11). Ele é um caboclo (IV) e é uma mocinha (VIII), mas é também um boi num matadouro em Minas Gerais (VI) e um inseto num terrário em São Paulo (VII). É também metal, seja moeda, seja maçaneta (XVII) e um pé – isso! um pé! – pensante (XVIII) ou “uma enorme pedra azeviche cruzando o universo” (RAIZ, 2022, p. 53).
Ocorre alguma alusão à mitologia clássica, por exemplo, Tirésias (VII), Ícaro
(IX), Dafne (XVII), Andrômeda (XVIII), Bíblis (XXXIII), todos mitos presentes
nas Metamorfoses de Ovídio. Há ainda menções a expoentes da literatura,
como o chileno Roberto Bolaño, o romeno Paul Celan, a estadunidense Djuna
Barnes, o brasileiro Roberto Piva, além de referências bíblicas. O corpo do Sr.
Ovídio é de ímã: “Tudo do universo com seu corpo copula” (RAIZ, 2022, p. 54).
Na poesia tentacular de Raiz, a ideia de metamorfose se revela
com os traços mais atuais, como se verifica nestes excertos:
XX
O Dr. Pedro Vital, do cartaz no poste, é o Sr. Ovídio. Diz o
cartaz: Dr. Pedro Vital comete erro e deixa paciente deformado. É tudo verdade.
O Dr. Pedro Vital – Sr. Ovídio queria operar uma mudança no paciente. Pela
deformação fazer do um um outro. No dia da consulta o paciente, que depois
ficou mesmo deformado, estava passando na frente de uma igreja e ganhou um
panfleto em que se lia a palavra <<igerja>> por um erro da gráfica.
XXX
O Sr. Ovídio quer dinheiro porque ama dinheiro e dinheiro é o
rei soberano de sua imaginação. Tendo dinheiro se tem a possibilidade de ser outra
pessoa. Sr. Ovídio é um vendedor de cachorro quente na imaginação de um menino
que ama dinheiro. Sr. Ovídio vende cachorro quente com um delicioso purê de
batatas, pensa que vai comprar um jipe para a irmã mais velha com o dinheiro do
cachorro quente, com o dinheiro também vai poder viajar pra Maceió e também vai
ser uma pessoa cheirosa que abraça os outros como se deve abraçar, sem medo de
estar fedendo.
Pesquisadora da obra e tradutora de Anne Carson (Eros, o
doce-amargo, Bazar do Tempo, 2022), Raiz publicou também um ensaio sobre a
autora canadense no jornal literário Suplemento Pernambuco em fevereiro
de 2020, no qual escreveu: “Carson é fã de enigmas e charadas: perguntas que
não cessam de perguntar, redemoinhos que não param de girar. Cuidado!
Superfícies molhadas são escorregadias”. Certamente, vale o mesmo para Metamorfoses
do Sr. Ovídio.
Um exemplo da poesia outra de Julia Raiz é o poema
damos voltas & mais voltas
para retornar ao primeiro buraco
da onde saímos
o destino
não é o final do intestino
borbulhante de um deus
uma voz que racha e se revela oca
é o sonho que se sonhou pra si
quando não havia distância
e todas as coisas não eram coisas
que amamos ou queremos longe
o sonho de um macaco
o sonho de uma pedra
de uma mulher louca na rua
o destino
é o lenço que ela amarrou no
pescoço
antes de saber que fazia frio
(Revista virtual do ColetivoMulheres que Escrevem)
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