TEBAS


Foto: Renata Teixeira


Tema: trilogia tebana de Sófocles

Realização: Cia. Elevador de Teatro Panorâmico

Dramaturgia cênica e direção: Marcelo Lazzaratto

Atores da Cia.: Carolina Fabri (Jocasta/Teseu), Marcelo Lazzaratto (Édipo cego), Pedro Haddad (Édipo), Rodrigo Spina (Creonte), Tathiana Botth (Antígona), Thaís Rossi

Atores convidados: Eduardo Okamoto (Coro), Marina Vieira, Rita Gullo

Iluminação: Marcelo Lazzaratto

Cenário: Julio Dojcsar

Figurino: Silvana Marcondes

Música original: Daniel Maia

Duração: 170 min. com intervalo de 15 min.

Estreia e temporada no Sesc Bom Retiro (SP): 26 maio-25 jun.2022

Visto em 4 jun.2022


Sinopse

Em “Tebas”, a Cia. Elevador cria um entrelaçamento das três peças que compõem a Trilogia Tebana: Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono, que discutem alicerces fundamentais de nossa sociedade: tirania e democracia; patriarcado, território e exílio; destino e livre arbítrio. Nessa nova dramaturgia, Édipo está nos três tempos vivenciando os dilemas, os mistérios, as dores, as perdas, as guerras, as angústias que atormentam Tebas e seus habitantes; uma figura humana que vê e revê incessantemente as causas e consequências de suas escolhas, e o Coro, interpretado por um único ator, assim como Édipo, perpassa os tempos, pois sabemos que, ao fim e ao cabo, somos todos nós cidadãos comuns que atravessamos as épocas e seus imaginários, geração seguida de geração, sempre sujeitos aos governantes e aos seus sistemas de governo. (divulgação)


COMENTÁRIO

Desconfio de que eu saiba, sim, o prazer que o Marcelo Lazzaratto teve ao conceber a dramaturgia cênica de TEBAS: a edição de excertos de três peças de Sófocles sobre o mito de Édipo, arranjados numa progressão temporal não cronológica, para o palco.


Penso que convém falar em “edição” porque, apesar de cenário e figurinos instigantes, é a palavra que prevalece. Os versos em português, na tradução direta do grego antigo realizada por Mário da Gama Kury no século XX, são emitidos numa elocução austera, preservados os pronomes pessoais de 2ª pessoa. Veja no cartaz os versos 745-7 de Édipo Rei, com ligeira adaptação (“pejo” por “vergonha”).



Livro de grande circulação, A Trilogia Tebana, com as traduções das tragédias Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, reunidas num só volume pela Jorge Zahar Editora, cuja primeira edição é de 1989, pode ser baixado neste link. Só lembrando, então, que essas peças de Sófocles não foram encenadas como uma trilogia na Atenas clássica, resultando o título, certamente, de uma estratégia comercial. Mais sobre esta produção, veja este post.


Édipo em Colono, peça do final de vida do dramaturgo grego, é tomada como vetor da montagem, o que me parece ser o grande mérito do encenador. Quem acompanha teatro sabe como Antígona frequenta muito o tablado, tampouco Édipo Rei é esquecido. Isso não ocorre com a peça tardia. Então, o que se vê logo de início (Atenção! Spoiler!) é Édipo, cego, amparado pela filha Antígona, um exilado de Tebas buscando asilo. Seu benfeitor será o rei Teseu, de Atenas. 


Verdade seja dita, o benfeitor passa a ser o Édipo cego, disputado também por Creonte, ex-cunhado pronto a ser rei de Tebas quando tiverem morrido Etéocles e Polinices, seus sobrinhos e herdeiros naturais do trono. Esse Édipo velho e maltrapilho é agora um condão dos deuses para a cidade que vier a abrigar seus restos mortais.


Passam pelo enredo de Édipo em Colono também a filha Ismene e Polinices, alijado de Tebas pelo irmão que se assenhorou do trono e que terá direito a honras fúnebres após o mútuo homicídio fraternal. 


Polinices, numa alusão à peça Antígona, encenada antes (441 a.C.), suplica às irmãs uma sepultura, antevendo sua morte como um inimigo de Tebas na batalha (v. 1661-7). Nessas intersecções é que surgem as melhores oportunidades de edição de TEBAS.


Na cena mais deslumbrante, penso eu, tem-se o Édipo cego, mas não desmemoriado, de Édipo em Colono, testemunhando duplo embate, construído cenicamente numa triangulação em desníveis no palco do Sesc Bom Retiro, em São Paulo. No alto, o jovem tirano de Édipo Rei acusa o cunhado Creonte, então um mero assecla, de traição com o vidente Tirésias (v. 629-739). No nível da plateia, em oposição ao atual rei de Tebas, Antígona, na peça homônima, é condenada à morte (v. 507-600). Rodrigo Spina, no papel de Creonte, alterna suas falas entre acusado e acusador. Não tenho uma foto dessa cena, mas a imagem mostra o cenário – use sua imaginação! 


 

A movimentação cênica permite entrever planos e vetores que direcionam as múltiplas temporalidades da montagem, embora não tenham sido reveladoras para mim as investidas rápidas do Coro, composto apenas do ator Eduardo Okamoto (que é professor na Unicamp, como Lazzaratto), pelo palco. O cenário também fica, penso eu, um enigma até que se leia o programa impresso:  


Visualidades: os Mitos estão sempre aí!

então... qual a arquitetura cênica que materializaria essa sua dimensão temporal na atualidade? Esta encenação escolheu um grande porto de qualquer lugar, os mitos acondicionados em contêineres, prontos a se manifestarem a qualquer momento, basta que alguém queira abrir a porta... e depois do “estrago” feito, serem transportados para outro lugar... a contemporaneidade quer e/ou receia ter com os Mitos? (“Os mitos em cada porto”, Marcelo Lazzaratto, programa de TEBAS, sem nº de página)


No programa, os temas do “tempo” e da “palavra” são abordados. Reservo um momento para tratar disso. Quanto ao tempo como teia da memória, não progressão linear, estamos bem. É nisso que se assenta esta montagem, articulando dois conceitos correlatos e indissociáveis: temporalidade & timing. O denominador comum em ambos é a fugacidade. Num átimo, já não se é mais o que se foi (temporalidade): “Depois, quando amadureceu a minha dor / e percebi que a minha ira me levara / longe demais punindo-me por velhos erros/” (Édipo em Colono v. 478-80). Num átimo, o teatro harmoniza falas díspares (timing): “E se pareço estar falando loucamente, / não posso reprovar quem me chamar de louco” (Édipo em Colono v. 1973-4).


Já quanto à palavra como corpo, expressa em todos os seus matizes, ainda que eu ganhe o meu pão com as Letras Clássicas, tenho cada vez mais dificuldade em desfrutar da expressão formal e, ouso dizer, artificiosa no palco. Isso vale para a produção shakespeariana também. A literatura aceita melhor essa marca temporal que o teatro. Vamos ver se me faço entender.


No mesmo fim de semana em São Paulo fui ver também, entre outras, duas peças que justificam menção: Lady X Macbeth: outros detalhes da peça escocesa (Sesc Consolação, 2 jun. 2022) e Diabinho e outras peças curtas (Teatro MASP, 5 jun. 2022). A primeira tem texto de Marcia Zanelatto, a segunda, de Caryl Churchill, tradução de Zé Roberto Valente. As duas acabam de encerrar temporada. Ambas foram escritas por mulheres que ainda estão vivas, portanto, nossas contemporâneas, é claro. Mas, mesmo revolvendo temas antigos, têm o frescor que promove a conexão imediata, sem baratear a expressão verbal.




De Shakespeare redivivo, tive que anotar no escuro, enquanto assistia à peça, frases que eu não queria deixar que se perdessem. Diz Lady Macbeth, na sua ambição voluntariosa: “Eu aceito a sobra se for de um banquete, eu aceito a sombra se for de um gigante”; “Se o delírio foi sua trincheira, Macbeth, a loucura será a minha”; “Um rei que domina o ferro e o aço, mas jamais tocou em ouro”. Sobre a peça e a postura ideológica da dramaturga, veja esta reportagem.



Não foi diferente com a peça curta “Matar” (Kill), a fala coletiva um deus sobre a brutal violência entre os homens e como ela vem sendo, desde a Antiguidade, atribuída à vontade divina. Só que os deuses não existem! A dramaturgia aborda a herança maldita dos tantálidas, descendentes de Tântalo, eternamente sedente e faminto no Tártaro. A saga tem início pelo fim, o matricida Orestes perseguido pelas Erínias/Fúrias. Eu não tenho o texto em português, mas compartilho o início em inglês:


We take this small box and shut the furies up in it, they’re furious and can’t get out, they say let us out and we’ll be kind. We gods can do that sometimes, quieten the furies, we can’t do everything, we don’t exist, people make us up, they make up the furies and how they bite. They’re after the boy, they won’t let him sleep or wake or sleep and he suffers. He suffers and suffers because he kills his mother, which we’re against and so is everyone but he has his reason so he’s right and wrong.



Evidentemente, cada projeto é um projeto e ninguém aqui está dizendo que a saga dos labdácidas deveria ter-se tornado um monólogo. Meu raciocínio talvez fale mais de mim como frequentadora de teatro: o que eu ainda anseio ver é o velho Édipo redimensionado como um exilado de nossos tempos, detentor de um poder tutelar que os países parecem não enxergar. 


Renata Cazarini


O projeto TEBAS foi contemplado pelo 12º Prêmio Zé Renato para celebrar 20 anos da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. 




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