MEDEA


Cia. do Sopro

Dramaturgia: Mike Bartlett (baseada em Eurípides)

Tradução: Diego Teza

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Fani Feldman (Medea), Daniel Infantini (Jasão), Juliana Sanches (Pam), Maristela Chelala (Sarah), Plínio Meirelles (Andrew), Bruno Feldman (Nick Carter), David Uander (Tom).

Estreia: 26 nov. 2021

Temporada presencial: 26-28 nov. 2021 (Sesc Pompeia, São Paulo)

Temporada online: 29 nov.-07 dez. 2021 e 16-19 dez. 2021 (Sympla)

Assistido em 28 nov. (presencial) e em 29 nov. (online) 2021

Duração: 85 min

Selecionado no ProAc


Ficha técnica complementar

Preparação: Inês Aranha

Trilha Original: Fernanda Maia

Assistência de direção: Marcella Piccin 

Iluminação: Fran Barros

Cenário: Bruno Anselmo 

Figurino e visagismo: Daniel Infantini 

Direção de vídeo, montagem e fotografia: Murilo Alvesso

Direção audiovisual - Murilo Alvesso | Câmeras - Murilo Alvesso, Jorge Yuri e Ju Lima | Som Direto - Tomás Franco | Assistênica de câmera e Grafismos - João Marcello Costa | Produção Audiovisual - Assum Filmes

Concepção do projeto: Fani Feldman e Bruno Feldman 

Produção: Quincas e Cia. do Sopro

Direção de Produção: Fani Feldman e Rui Ricardo Diaz

Assistente de Produção: Laura Sciulli


Sinopse:

Ao adaptar este clássico grego, Mike Bartlett transporta o território e a realidade originais da Grécia antiga a um terreno suburbano localizado em um conjunto habitacional, análogo aos bairros que bordejam as áreas centrais de cidades grandes ao redor do mundo. E o faz não por mera similaridade, nem tampouco para assegurar a fruição do espectador com artifícios referenciais deste tempo, mas para tratar de matérias próprias da contemporaneidade, sem que, por conta disso, perca de vista o alicerce mitológico que respalda sua obra. (...) As condições agora estão circunscritas pela lógica particular, individualista e degradante, capaz de tornar ainda mais complexo o emaranhado de vetores que fabricam a tragédia de Medea. (divulgação)


Atuantes no palco do Sesc Pompeia em 28/11/21


COMENTÁRIO

Em 2012. Mais precisamente: Em 27 de setembro de 2012, o dramaturgo e encenador inglês Mike Bartlett estreou no Citizens Theatre, em Glasgow (Escócia), sua versão da Medeia de Eurípides, chamada Medea. Sobre a produção, muito material pode ser lido (em inglês) neste site.


Há também uma porção de críticas, mas eu selecionei duas, que, de alguma maneira, se complementam. Aqui a mais curta. Eu, no entanto, prefiro esta, mais completa. É também mais ácida. E, sendo justa, dou a voz ao dramaturgo, que concedeu esta entrevista semanas antes da estreia.


Cenário da montagem inglesa de Medea

Agora é a hora que você diz – em voz alta, por favor: A mulher tá doida! Por que é que vou ler isso tudo, sobre uma Medeia inglesa de nove anos atrás?


Bom, é porque a Cia. do Sopro adicionou ao seu repertório essa versão do mito grego, depois de ter sido selecionada num edital ProAc. Em meio à pandemia da covid-19, na expectativa – frustrada – de estrearem presencialmente em agosto de 2020, conseguiram adiar a montagem até agora. Aconteceu afinal a estreia presencial no Sesc Pompeia, em São Paulo, com três sessões, das quais consegui ver a última. Em seguida, houve a estreia online, com várias sessões ao longo deste mês de dezembro. Eu já vi também e acompanhei o bate-papo que se seguiu à primeira transmissão.


Cenário da montagem brasileira de Medea


Há muito que falar sobre essa dramaturgia inglesa e sobre a opção da trupe brasileira. Não sei se tenho fôlego. Vou passar pelos pontos que me são mais sensíveis.


Primeiro, para nós, espectadoras/es que conhecem a versão de Medeia mais famosa no país (Gota d’água), é interessante ver que, também na Inglaterra, a casa, o teto da família, seja elemento central da trama, como revela a cenografia: a morada do casal Medea e Jason é do tipo conjunto habitacional, no subúrbio de uma cidade pequena, em que é melhor serem todos iguais do que diferentes. A versão brasileira problematiza a questão da moradia política e economicamente. A inglesa se limita às relações sociais.


Para o prestigiado pesquisador Oliver Taplin, a versão de Bartlett traz “a new comic-tragic setting on a small-town housing state” (um novo cenário cômico-trágico num conjunto habitacional de uma cidade pequena). Se interessar, leia aqui. 


Essa atualização do contexto é algo que costuma me agradar muito, como sabem os leitores que seguem o blog e o meu trabalho com a recepção dos clássicos. Contudo, falta algo nesta versão inglesa. Falta o deslocamento, a desterritorialização da protagonista. Não basta que ela se ressinta de ter vindo de outro lugar e de morar ali, numa comunidade provinciana, por causa de Jasão. Falta a expressão do pertencimento a outra terra, a outro povo, a outra cultura. O resgate de quem é Medea é fundamental à versão canônica do mito. Por isso, quando a Medea de Bartlett diz duas ou três vezes que é uma bruxa, ela não convence. 


E isso não tem a ver com a montagem brasileira. Pode-se ler o mesmo na crítica que recomendei mais acima. Eu não copiei a ideia de Gary Raymond, eu me dei conta disso na sessão presencial e, depois, na online. E hesitei sobre como tratar este tópico. E hesitei. E fui ler outros. E não achei neles o que eu pensava dizer. Então, vou dizer. 


É como se a peça de Bartlett fizesse um “whitewashing” (branqueamento) da Medeia canônica: os traços de barbarismo – no melhor sentido – da protagonista de Eurípides escorreram pela pia da cozinha vermelha. Ela se tornou uma mulher branca ocidental que esbraveja porque foi trocada por uma mais jovem. E isso aconteceu, na versão do Jasão inglês meio punk, porque Medea o colocava em segundo plano desde que se tornou mãe, e o destratava, e até o ridicularizava.


Screenshot da discussão entre Medea e Jasão


Surge agora a oportunidade de inserir uma fala de Medea:

“I divide men into three groups: wankers, dads, and rapists. Wankers need a mum, dads treat us like children and rapists want to fuck us whether we like it or not.” (Mike Bartlett)

"Eu divido os homens em três grupos: idiotas, tios e estupradores. Os idiotas precisam de uma mãe, os tios nos tratam como crianças e os estupradores querem nos foder, gostemos ou não". (Tradução de Diego Teza)


Quando uma mulher está na plateia e ouve isso, pensa que vai daí pra melhor. Mas não. Decepcionada, fica na minha memória afetiva que a versão de Bartlett é uma DR. 


(Ah! Sim, Jasão se enquadra na primeira categoria de homens).


Eu perguntei pro pessoal da Cia. do Sopro sobre isso. Eles estão cientes da delicadeza do assunto – o que merece crédito. Bruno Feldman reconheceu que a peça transita no “fio da navalha”, mas aposta que trazer a obra para o nosso tempo compensa. Plínio Meirelles avalia que essa Medea “não encontra uma saída emocional” – o ator usa uma linguagem que faz bastante sentido para o público de hoje. A conclusão deles é que a DR existe mesmo, mas que ela é consequência, não o mote da peça. Eu digo: hum, pode ser, talvez, quem sabe...


Screenshot da cena final de Medea


Pra encerrar este comentário, que já vai mais longo do que de costume, vale salientar que a Cia. do Sopro encara – com muita propriedade, a meu ver – a peça presencial e a produção online como obras distintas. Há razões para isso. Além do óbvio argumento de que são meios diferentes – o teatro e o audiovisual – com implicações próprias como, por exemplo, a reação da audiência, a edição de imagens com close-ups, há diferenças de conteúdo nas duas obras da trupe.


Uma é a cena de nudez parcial de Medea quando convoca Jasão para uma última noite de sexo, na véspera do casamento com Kate, personagem que nunca aparece, mas sobre a qual se fala o tempo todo. A transmissão online é via YouTube, daí pode ter havido a autocensura.


A segunda é a que interessa de fato: o filho único de Medea e Jasão, o personagem Tom, que será morto por ela nos bastidores, é persona muta, mas presente no palco do Sesc Pompeia e ausente da telinha. A solução de adotar o ponto de vista do menino a partir de uma das três câmeras usadas na gravação é bastante satisfatória.


Escrevi isso tudo para você se interessar por ver.

Renata Cazarini

Comentários