LEITURA DE FÉRIAS 1



EU CARREGUEI MEU PAI SOBRE MEUS OMBROS
De Fabrice Melquiot
Tradução de Alexandre Dal Farra
Cobogó
2019


Na prateleira de Teatro na Blooks em Niterói, foi o título que primeiro chamou minha atenção. Depois, o nome do tradutor, dramaturgo de prestígio. Outro fator que me fez considerar a compra do livro foi a editora, que tem publicado textos teatrais nacionais e traduzidos. Comprei.


A edição brasileira é de 2019, mesmo ano da publicação na França pela editora especializada L’Arche, que edita os numerosos livros do premiado dramaturgo francês. No Brasil, o livro saiu como parte de um projeto de internacionalização da nova dramaturgia francesa e brasileira, do qual participa o teatro La Comédie de Saint-Étienne, onde estreou a peça de Melquiot, encomendada pelo seu diretor artístico Arnaud Meunier, em 29 de janeiro de 2019.


Veja o teaser aqui


Como o título do livro indica, a peça retoma o herói da “Eneida”, localizando-o na França de hoje: Enné, o protagonista, jovem da periferia, se dispõe a carregar nas costas o pai condenado pelo câncer numa viagem de despedida até Portugal. Mas este Eneias “não é um joguete do destino”, segundo nota do autor (p. 17).  “Eu espero que a peça, por nos convidar a carregar nos ombros aqueles que o mundo esmaga, seja lida como uma aceitação da vida, carregada da energia própria ao desespero” (p. 18).


Fabrice e Dal Farra


O texto “J’ai pris mon père sur mes épaules” é apresentado pelo autor como “melodrama épico”. O tradutor mesmo reconhece que “seu caráter de epopeia carrega importantes aspectos de linguagem, e há um trânsito entre diversos registros que complexifica o trabalho” (p. 9). 


Dal Farra diz que “o gesto mais importante da obra” é colocar a grandiosidade da epopeia em contato direto com a realidade dos bairros periféricos de Paris. “Trata-se, portanto, de uma linguagem peculiar, nem apenas poética nem de modo algum naturalista, e que oscila entre momentos mais épicos e outros mais dramáticos, colocando-se em contato com um vocabulário específico, que não consta do dicionário” (p. 10).

A peça ainda não foi encenada no Brasil, mas teve uma leitura dramática em 13 de setembro de 2019 pelo Coletivo Angu de Teatro, de Pernambuco, sob a direção de Dal Farra, no Teatro Santa Isabel, no Recife. Informações aqui



O TEXTO DE MELQUIOT
São 26 breves cenas. Na primeira, apresenta-se Anissa, mulher de 40 anos, ligada a Enée e ao pai dele, Roch, grávida de um deles. No monólogo que é um prólogo, ela se dirige ao público:


A qualidade do amor que eu tenho por um
Difere da qualidade do amor
Que eu tenho pelo outro
Mas o céu das duas geografias
É azulíssimo
Eu não vou me reter
Em uma informação
Que será entregue a vocês logo mais
Dos dois amores nascidos entre
Esses muros de 47 centímetros de espessura
O primeiro me liga ao pai
E o segundo ao filho


É isso
Está dito


Logo na segunda cena, o pai revela ao filho que tem osteossarcoma e pouco tempo de vida. Tremores de terra assaltam o bairro e Grinch, o melhor amigo de Roch, desempenha na quarta cena a função de mensageiro, relatando os estragos que viu ao voltar ao bairro:


Me deixa falar
Da visão do regresso
As pessoas da periferia que
Se seguravam umas às outras
Algumas ainda gritavam
Meninos encenavam para si mesmos o filme
Com barulhos
A cena
No meio dos prédios
A maioria estava com a bunda na grama
Ou em cima das muretas
Caso recomeçasse
Faltavam muitos carros
Nos estacionamentos
Pessoas que partiram
Já longe
Como se estivéssemos no epicentro
Como se nós pudéssemos sê-lo
Nós não somos o epicentro
Nós nunca seremos o epicentro
O epicentro de coisa nenhuma
O único epicentro é
Meu buraco de bala
Que é o epicentro do
Meu cu
Eu continuo sendo educado


Outras relações afetivas se insinuam entre Enée e o melhor amigo Bakou, um aspirante a ator, e entre Mourad, um árabe convertido ao jainismo, e Céleste, antiga namorada de Enée. Cada um deles se apresenta na sua precariedade social, mas solidária. Na cena 11, celebram a partida de Enée e Roch, que vão para Portugal com suas reduzidas economias. Anissa usa aqui a formulação “A cena representa...”, recorrente na peça:


A cena representa
A morte à mesa conosco
Em volta dela
Nós tecemos um
Esboço
De pequenas frases
Que não dizem nada
Do verdadeiro
Estado de nossos corações


Então se descobre na manhã seguinte que as economias tinham sido levadas pelo grande amigo Grinch, deixando pai e filho sem tostão para a viagem de despedida da vida. É na cena 14 que Enée concebe o plano de viajar com o pai, recusando ajuda em dinheiro, levando-o nos ombros, como Eneias levava Anquises, segundo a tradição mítica. Sua fala é parte de um diálogo:


Eu vou carregá-lo. Papai, a gente vai embora. A gente não está numa propaganda: não me incomoda que através da janela a terra pareça a esse ponto feita para os perdedores. Isso me corresponde. Eu já perdi um monte de coisas. Eu posso continuar. É com o meu coração que eu quero desafiar as coisas. Não com a grana dos outros. Eu vou jogar a partida com o meu coração e com os meus ombros. Meu pai vai morrer, desculpa, papai, mas eu acho que a ideia inicial mudou de rumo, a gente pode falar disso sem a mão na frente da boca. Se Grinch roubou nossos 3.000 paus, foi para nos dizer: vocês não precisam de 3.000 paus, caras.




Enée não chega a ser chamado “piedoso”, como Eneias, mas como “magnânimo”. É o que diz Bakou: “Eu te reconheço, só isso. E te admiro”. Anissa diz que é a pobreza que torna largos os ombros de Enée: “A pobreza é sempre generosa”. Na viagem, chegam à fronteira da França com a Espanha. Na cena 18, fica-se sabendo que Enée nunca leu a “Eneida”, mas sabe do herói seu xará. Dali, dessa parada rodoviária lamentável, de um carro abandonado no estacionamento, o pai não sai mais. No dia do ataque ao clube Bataclan, em Paris, novembro de 2015, ele morre.