ÉDIPO REC - DANÇAR ATÉ O PÉ INCHAR

 

Édipo REC
Tema: mito de Édipo (Sófocles)
 
Ficha técnica
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Direção: Luiz Fernando Marques
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Pedro Wagner (Magiluth) e a atriz Nash Laila.
Design de luz: Jathyles Miranda
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila, Luiz Fernando Marques
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado
Duração: 120 minutos
Idade mínima: 18 anos
Local: Sesc Pompeia - Galpão
Temporada: 27 set. a 26 out. 2024
https://www.sescsp.org.br/programacao/edipo-rec/
Assistido em 03 out. 2024

“Um determinado momento da vida em que surgem memórias repentinas, involuntárias e vívidas de experiências pessoais passadas. Em muitos casos, essas memórias poderosas estão intimamente ligadas a eventos traumáticos”. Esse é o conceito de Flashback, mas poderia ser sobre a vida de Édipo, não é? Então será! Vamos a Édipo Rec, a tragédia à la Magiluth. (divulgação)


Quem filma quem? Eu na tela, captada pelo Corifeu.

COMENTÁRIO

O amor é o negócio do Magiluth, trupe recifense de teatro que celebra seus 20 anos com a peça Édipo Rec, no Sesc Pompeia, em São Paulo. A dramaturgia de Giordano Castro, também no papel de Édipo, se calca nesse afeto, mesmo quando faz uma tropicalização da peça clássica grega de Sófocles. A tragédia do século V AEC não trata do amor, não – fiquem sabendo os desavisados. Trata-se da busca desmedida de um homem por desvelar uma verdade da qual parece suspeitar relutando nela acreditar.

Édipo (Giordano) e Jocasta (Nash) na festa.

“Eu te amo!”, declara esse Édipo para a sua Jocasta em meio a uma festa. Ele é o DJ Édipo, que assume o trono dessa Tebas momentaneamente festiva, recebendo um headphone como se fosse uma coroa. Vemos Tebas antes da peste na primeira parte do espetáculo – música, dança, karaokê, beijaço, Tebas carnavalesca, como é descrita. Ninguém se senta na plateia dupla do teatro do Sesc Pompeia. Alguns são convidados ao palco com os atores, outros são levados às galerias superiores.

Além da boa sacada do título, que alude tanto à tecla de gravação dos equipamentos de som como à cidade de Recife, o dramaturgo brinca com a possível tradução do nome do protagonista: “DJ Édipo pra você dançar até o pé inchar”. Quem rouba mesmo a cena é o Coro-ela, personagem trans que se dirige à plateia sempre no feminino, papel de Erivaldo Oliveira, portando um leque preto enorme, manuseado ininterruptamente como se fosse uma arma branca nas mãos de alguém cheia de autoridade e pronta a agir.

Coro-ela (Erivaldo) na área externa do teatro.

O Corifeu (Bruno Parmera) é o cameraman do espetáculo, colocado em xeque pelo Coro na sua função de retratar as aparências, não as verdades. O valor da imagem é questionado quase academicamente na segunda parte da peça, quando tudo assume aura de gravidade por causa da peste e da investigação que decorre do oráculo cobrando um morto pela morte de Laio, o DJ que reinava antes de Édipo, seu pai, assassinado em circunstância singular na peça brasileira: após uma rivalidade entre motociclistas nas ruas de uma cidade. Tudo gravado e documentado.

Foi uma surpresa e me agradaram muito as falas do Mensageiro (Lucas Torres). Na primeira parte do espetáculo, se apresenta, comenta o personagem-tipo que nem mesmo recebe nome nas tragédias. Ele, no entanto, recebia atenção de Laio, chamado até por seu nome pelo rei. Ficamos sabendo que, como na peça de Nelson Rodrigues (“O beijo no asfalto”), o Mensageiro atende o último pedido de Laio. Na segunda parte, vemos a cena gravada do beijo concedido ao moribundo ali mesmo no asfalto.

Tirésias (Pedro Wagner) na festa.

Todo o figurino do espetáculo chama a atenção, desperta o interesse, mas o de Tirésias tem camadas de significações. Muito além dos óculos escuros, um chavão para marcar a cegueira do vidente (com o perdão do trocadilho), a combinação saia-de-tule e botas-de-salto com paletó-camisa-gravata, envergada por Pedro Wagner, alude à transição mitológica do personagem de homem para mulher e homem novamente. Um bom resumo do mito em diferentes versões você encontra no portal Graecia Antiqua.

A recém viúva Jocasta diz ter 38 anos na montagem do Magiluth, que convidou a jovem Nash Laila para o papel (embora a trupe seja de rapazes, não deve ter sido por isso). Mãe e esposa de Édipo, irmã de Kreon (Mario Sérgio Cabral), que a oferta como prêmio ao novo tirano de Tebas, a personagem é rapidamente seduzida pelo jovem DJ com o rap “Se tá solteira”.

Charmosa, cheirosa
Nossa, que mulher gostosa

Se 'tá solteira vamo' ficar de casal
Se 'tá solteira vamo' ficar de casal
Se 'tá solteira vamo' ficar de casal

O repertório do DJ vai muito além do meu conhecimento musical. Com certeza perdi sutilezas da dramaturgia que passam pela seleção feita por Giordano Castro, que opera a pickup: “Pensar o Édipo como um DJ é pensar que a função do DJ também pode ser de tirania – eles dançam conforme a minha música”, afirmou ao Canal Arte 1. 

O que fica evidente é que o chamado “classicismo” é desafiado e desconstruído no palco, numa festa que retoma o que o Magiluth já havia feito com Hamlet, de Shakespeare, na imperdível e inesquecível versão Dinamarca (2018).

Édipo nos dá as costas, captado pelo Corifeu (Bruno).

Espaço mágico

Dentre tantas coisas que ainda se poderia comentar numa montagem que é, de fato, um espetáculo, o que mais me contagia é o mapeamento e ocupação do espaço do teatro de duas plateias do Sesc Pompeia, em São Paulo, projeto da arquiteta Lina Bo Bardi. Documentário. O teatro tem 774 lugares, que foram parcialmente ocupados, de um só lado, apenas na segunda parte da peça. Somos todos convidados a sair e a voltar, vinte anos depois da festa, já em plena peste. 

Édipo, sob luz fria, na pickup durante a peste.

A cenografia é a mesma e outra: a pickup e os resquícios da memorável festa de há duas décadas. Tudo parece de outra época, já remota. Édipo trocou o vermelho-fogo-paixão pelo cinza-paira-sobre-mim-uma-sombra; não mais sorrisos, apenas gritos. 

Édipo ataca Kreon (Mario Sérgio) na galeria superior.

Édipo e o seu cunhado, que ele julga um traidor, Kreon, discutem na galeria superior do teatro. Tirésias se aproxima da cena pelos fundos da plateia desocupada, longe, à distância, e vai se aproximando de nós, no lado oposto. Há cenas que acontecem nos bastidores e as vemos apenas nas telas verticais que ocupam o palco desde o início, mas que agora assumem centralidade na narrativa, não apenas ilustrações da trama ou letreiros do karaokê da festa. Ainda assim, a cena da morte (atenção, spoiler!) do Mensageiro se dá nos bastidores, apenas com o estampido do revólver, como na antiga tradição da tragédia clássica. O encenador Luiz Fernando Marques (Lubi) chama esse espaço de estreia do espetáculo de “nosso primeiro Palácio-Dancefloor” da FESTA/PESTE. Folder.

Palácio-Dancefloor em Tebas/Sesc Pompeia.

Anarquizar é obra de/do teatro. É quando o teatro está no seu melhor. Essa saudável anarquia é mais do que uma festa com lâmpada estroboscópica. É devassar o espaço teatral com luz e sombra, com som e silêncio, com presença e ausência.

Tirésias, ao longe, dá a dimensão do palco vazio.

O que tem tudo a ver com retomar em uma língua de elocução moderna como o “brasileiro” um texto antiquíssimo, que, de outra forma, talvez ficasse relegado à sombra, ao silêncio, à ausência. Mas essa retomada não é ingênua. É ácida e incômoda até para o grupo recifense. No fim, eles criticam esse eurocentrismo, deixando em nós uma dúvida profunda a respeito daquela festa para a qual nos convidaram.

Renata Cazarini
recazarini@id.uff.br

Magiluth com Nash. O diretor Lubi Marques, em vermelho.


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