FOME DE TEATRO: uma estética


Lives das peças não foram até agora, na pandemia, uma opção para o Teat(r)o Oficina, que mantém uma campanha intensa nas redes sociais para financiar suas atividades. O projeto tão consagrado de Zé Celso Martinez Correa e equipe do Uzyna Uzona resolveu, no entanto, lançar a Rádio Uzona, além da TV Uzyna, que já exibe os vídeos de algumas das peças encenadas pelo grupo, Bacantes, inclusive. 


Minha pegada aqui é a estética do radioteatro que a companhia diz que “busca reinventar” com o lançamento, em 11 de junho de 2020, do podcast “Pra dar um fim no juízo de deus” (Pour en finir avec le jugement de dieu), peça radiofônica do francês Antonin Artaud (1896-1948). Creia em mim: isso tem, de alguma forma, a ver com o teatro antigo e sua recepção. 


Zé Celso voltou a encenar entre 2015 e 2016 a montagem que havia feito nos anos 1990 da peça radiofônica artaudiana, encomendada pela Radiodifusão Francesa e por ela mesma censurada na véspera da estreia, em fevereiro de 1948. Nesse mesmo ano, pouco antes da morte do poeta, ocorrida em março, foi feita uma audição fechada da gravação, só transmitida finalmente para o grande público em 1973. A peça é uma colagem de quatro textos, portanto, uma obra de fragmentos: J’ai appris hier; Tutuguri; La recherche de la fécalité; La question se pose de... A gravação original, realizada entre 22 e 29 de novembro de 1947, sobrevive e pode ser ouvida aqui.


A publicação em livro, ainda em 1948, perdeu a força sonora das palavras, como o próprio Artaud afirmou numa carta de 10 de fevereiro, endereçada a Jean Paulhan, editor da Nouvelle Revue Française (NRF), citada por Florence de Mèredieu na sua extensa biografia sobre o autor (Eis Antonin Artaud, 2011, p.962): “Não se ouvirá os sons, a xilofonia sonora, os gritos, os ruídos guturais e a voz, tudo que constituía, enfim, uma primeira moagem do Teatro da Crueldade”. Confrontando a tradição cultural francesa, Artaud estabeleceu, nos anos 1930, a base teórica do que viria a batizar de “Teatro da Crueldade”: um teatro dito “puro”, em que a ação, o dinamismo interior do espetáculo, tratando das angústias da vida, superasse a ilusão desencadeada pela busca da verossimilhança. Ao ler as tragédias de Sêneca em um de seus vários períodos de internação para desintoxicação, Artaud identificou-se com o que considerava a manifestação das forças do caos, forças de um estágio ainda não humano, segredos transmitidos com tal habilidade em palavras, que até um cético do texto dramático, como o poeta dizia ser, quis recitá-las. Em uma carta de 16 de dezembro de 1932, Artaud relatava Paulhan que estava lendo o autor latino e tinha planos de realizar leituras públicas das peças. Alguns anos depois, Artaud chegou a programar a encenação, em Marselha, de sua adaptação do “Tiestes” de Sêneca, “O suplício de Tântalo”, texto dado como perdido pelos editores de sua vasta obra, composta em grande parte de cartas.


Escrevi sobre Artaud e Sêneca na minha dissertação de mestrado, em 2015. Breve trecho do capítulo pode ser baixado aqui. A dissertação toda, se for de interesse:


CVNCTA QVATIAM – Medeia abala estruturas / O teatro de Sêneca e sua permanência na cena contemporânea: tradução e estudo da recepção. (dissertação)


E, já que faço autopromoção, segue também o link da tese, que muito me honra por ter sido indicada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da USP ao Prêmio Capes de Tese 2020:


Entre a tradução e a adaptação: Édipo, de Sêneca. (tese)


Antonin Artaud


A proposta estética de Artaud é desenvolvida numa linguagem poética, como se pode verificar no prefácio ao texto seminal de 1938, O TEATRO E SEU DUPLO: 


«Le plus urgent ne me paraît pas tant de défendre une culture dont l’existence n’a jamais sauvé un homme du souci de mieux vivre et d’avoir faim, que d’extraire de ce que l’on appelle la culture, des idées dont la force vivante est identique à celle de la faim».


“Mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou uma pessoa de ter fome e da preocupação de viver melhor, quanto extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é idêntica à da fome”. (Tradução de Teixeira Coelho)


Daí se vê que não é banal que a foto promocional desse primeiro podcast do Oficina na pandemia sintetize os retratos de Zé Celso e Artaud. O teatro é, também para o mestre brasileiro, aos 83 anos, visceral, como ele mesmo disse numa live sobre a política cultural: “Faz falta estar em cena como quando falta água”. A situação é grave. Zé Celso revelou que, quando puderem ser reabertos os teatros ao público, o layout interno do Oficina estará, muito provavelmente, alterado. Segundo o diretor, hoje se pensa em fazer uma plateia central e os atuadores, circundando o público. Um agravante para o Oficina é que as estruturas são de ferro, material que pode reter por mais tempo o novo Coronavírus. A prática teatral do Oficina, como se sabe, é a da corporalidade: “É um teatro muito tátil, leva muito em conta a respiração do público”, disse Zé Celso. Ele aposta e insiste na reversão do veto da Prefeitura de São Paulo à criação do Parque do Bixiga, ao qual o teatro se integraria: “Temos que cafetinar o Coronavírus para uma cidade ecológica”.


Teatro Oficina

 

Por ora, o Oficina faz essa aposta curiosa no radioteatro. Seguindo as práticas adequadas num período de isolamento social, cada um dos participantes gravou as falas ou cantos em casa, com o equipamento disponível, bem básico, como celulares e computadores pessoais, segundo Felipe Botelho, encarregado da direção musical e da trilha sonora, que fez a mixagem de som. Os ensaios foram feitos via videoconferência. Marcelo Drummond, que dirigiu a peça radiofônica, disse que o Oficina busca uma linguagem do teatro no podcast e já tem novos projetos: “O bailado do deus morto”, peça de Flávio de Carvalho (1899-1973) que estava em cartaz quando foram suspensas as atividades teatrais, além de “Paranoia” e “Cacilda!”.


Vale a pena comentar também a estratégia comercial, por assim dizer, do Oficina. A estreia de “Pra dar um fim no juízo de deus”, nesta quinta-feira, foi exclusiva para os apoiadores do teatro. Apenas em 19 de junho será liberado gratuitamente o podcast. Houve até contagem regressiva no site para o lançamento. Os apoiadores receberam um e-mail com um link para acompanhar a estreia. Eu colaboro, por isso, já ouvi. Então, faço um comentário rápido.




Comentário

A peça radiofônica passa por uma total atualização, com inserção de gravações de áudio de autoridades governamentais brasileiras, mas essa proposta não negligencia o texto artaudiano, não deixa a pressão externa de uma realidade indecifrável se sobrepor. Pelo contrário, faz vir à luz a contemporaneidade da obra, que pareceria um devaneio fossem outros os tempos. Na peste, nada é doido demais. O Oficina insere uma rápida cena de Joana D’Arc, talvez aludindo ao filme de Carl Theodor Dreyer, de 1928, no qual Artaud atuou. Na boca de Zé Celso vem o arremate da peça, quando o autor francês é instado a se pronunciar. No original, Artaud fala dos “micróbios de deus”. Neste 2020, Zé Celso fala dos “vírus de deus”. C’est comme ça


Não dá nem pra pensar no podcast fazendo as vezes da peça encenada. Quem já viu a montagem no Oficina e vier a ouvir a Rádio Uzona haverá de saber do que falo. No chão do teatro, toda a escatologia artaudiana – incluindo masturbação e defecação ao vivo – é atinente ao texto, não é “coisa do Oficina”. Na gravação, por mais que tenha sido trabalhada uma pauta ampla de efeitos sonoros, incluindo descarga e (preste atenção!) a água que fica vazando ali como trilha de fundo, não se tem o Pascoal da Conceição defecando à vista de todos. Essa experiência coletiva do inusitado compõe o espetáculo. E olha que Pascoal está no podcast, mas não basta.  


Agora: eu posso muito bem imaginar o maravilhamento de quem, tendo entrado em contato com essa obra de Artaud pela primeira vez via o podcast do Oficina, tenha a chance de ver a peça no chão do teatro! Será um transbordamento. Que seja logo.


Excerto do texto de Antonin Artaud, com tradução de Caroline Pires Ting, da UERJ:


"Vous êtes fou, monsieur Artaud, et la messe?" 

"O sr. está louco, sr. Artaud, e a missa?"


Je renie le baptême et la messe. 

Eu renego o batismo e a missa. 

Il n'y a pas d'acte humain 

Não há ato humano 

qui, sur le plan érotique interne, 

que, no plano erótico interno, 

soit plus pernicieux que la descente 

seja mais pernicioso que a descida 

du soi-disant Jésus-christ 

do pretenso Jesus-cristo 

sur les autels. 

nos altares.

On ne me croira pas 

Não me acreditarão 

et je vois d'ici les haussements d'épaule du public 

e posso ver daqui o público dando de ombros 

mais le nommé christ n'est autre que celui 

mas esse tal cristo é apenas aquele 

qui en face du morpion dieu 

que diante do percevejo deus 

a consenti à vivre sans corps, 

aceitou viver sem corpo 

alors qu'une armée d'hommes 

quando uma multidão de homens 

descendue d'une croix, 

descendo de uma cruz 

où dieu croyait l'avoir depuis longtemps clouée, 

onde deus acreditou tê-los pregado há muito tempo,

s'est révolté, 

se rebelou 

et, bardée de fer, 

e munida de ferros, 

de sang, 

de sangue, 

de feu, et d'ossements, 

de fogo e de ossos 

avance, invectivant l'Invisisble 

avança, desafiando o Invisível 

afin d'y finir le JUGEMENT DE DIEU. 

para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.


Aqui você pode ler todo o texto em francês e aqui em português, na tradução de Caroline Pires Ting, da UERJ.

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