GOTA D’ÁGUA {PRETA}



Mito: Medeia, de Eurípides
Texto e dramaturgia: Paulo Pontes e Chico Buarque
Temporada: 08.02.19 a 17.02.19
Local: Itaú Cultural | SP
Direção geral: Jé Oliveira
Direção musical: Jé Oliveira e William Guedes
Elenco: Aysha Nascimento, Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Jé Oliveira, Juçara Marçal, Marina Esteves, Mateus Sousa, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão
Assistido em: 14.02.19
Duração: 200 min (com um intervalo)


Sinopse
Joana é uma mulher madura, sofrida, moradora de um conjunto habitacional, prestes a ser despejada junto com os dois filhos. Jasão é um jovem vigoroso, sambista e famoso. Por meio da metáfora de uma traição conjugal, a obra busca refletir e realçar a discussão racial, social e de classes com base no atual momento político do país e debruça-se, sobretudo, acerca [sic] do golpe desferido por Creonte e Jasão contra Joana-Povo. (Divulgação)


Nota bene
Na edição da peça, os autores Paulo Ponte e Chico Buarque publicam um “manifesto” sobre o trabalho, relevante para a história da dramaturgia no Brasil, do qual reproduzo um trecho.


“Gota d’água”, a tragédia, é uma reflexão sobre esse movimento que se operou no interior da sociedade, encurralando as classes subalternas. É uma reflexão insuficiente, simplificadora, ainda perplexa, não tão substantiva quanto é necessário, pois o quadro é muito complexo e só agora emerge das sombras do processo social para se constituir no traço dominante do perfil da vida brasileira atual. De tão significativo, o quadro está a exigir a atenção das melhores energias da cultura brasileira; necessita não de uma peça, mas de uma dramaturgia inteira.


A PEÇA HOJE
A nova versão {preta} se mantém como um musical, incluindo as quatro canções de origem (Flor da Idade, Bem querer, Gota d’água, Basta um dia), mas repaginado sonoramente para os dias de hoje, com a inclusão do RAP no universo dos moradores da Vila do Meio Dia. O codiretor musical William Guedes comenta no programa distribuído no Itaú Cultural: “Anacronia é isso: Eurípides estava lá. Vieram as Tias Baianas. Depois, Chico e Paulo Pontes. E agora? Racionais MC’s!”.


Juçara Marçal, vocalista do trio Metá Metá, faz Joana (Medeia). O desafio é inglório em tempos de louvores à recém-falecida Bibi Ferreira (1922-2019), que estrelou a peça em 1975 (foto), quando era casada com o coautor Paulo Pontes. E aqui dá pra ver um trecho da Bibi em monólogo e aqui tem registro de época e ela cantando. E mais, o IMS disponibiliza o disco Gota d'água.




No programa, Juçara (foto), que é mestre em Letras pela USP, fala de seus desafios com a peça: “Pela primeira vez, atuar como atriz num processo teatral, trabalhar com um texto tão fundamental na história do teatro brasileiro, com um elenco pela primeira vez majoritariamente negro, imbuído da ideia de trazer as referências do povo negro para a peça”.
Esclarecimentos sobre o projeto e um dos ensaios estão nesta reportagem da TVT.

O manifesto do idealizador do projeto e diretor geral da montagem, Jé Oliveira, está aqui na íntegra, do qual extraio só um parágrafo que pode ser uma síntese.

“Talvez a principal e mais relevante preocupação artística e social que nos levou ao encontro de ‘Gota D’água’ foi a necessidade de pensar o país e a constatação de que, desde 1975 (data da feitura do texto original), a historiografia teatral, parcial e exclusora, não registrou a existência de montagens que tiveram em seu elenco, na representação de Joana e Jasão, sobretudo, mulheres e homens negros. O que se busca aqui não é uma reparação histórica, o que já seria suficiente para diminuir um hiato acerca da presença negra em papéis relevantes na dramaturgia nacional, mas busca-se também um atualização da realidade social com base na coerência, ainda não realizada por nenhuma montagem, da própria ‘Gota D’água’ de Chico Buarque e Paulo Pontes: se essa história é a de pessoas pobre e macumbeiras, nada mais justo e coerente que, tendo como base esses marcadores sociais de diferença, a saber: religião, raça e classe – como sabemos, a maioria da população brasileira é preta e pobre. Classe e raça são marcadores muito próximos em diversos aspectos, e a classe teatral, branca em sua maioria esmagadora, por vezes pensa nas diferenças de classe, mas faz pouco o exercício prático e reflexivo acerca de raça”.

Para essa montagem, Jé Oliveira encontrou algumas restrições e, por ora, só estará em cartaz em São Paulo. Depois do Itaú Cultural, será encenada no Centro Cultural São Paulo em março. Como relata o jornal O Globo, outra montagem “Gota d’água [a seco]” tem os direitos e ainda deve voltar aos palcos cariocas. Jé Oliveira explica: “Foi um debate bem extenso com a Sociedade Brasileira de Autores e Artistas de Teatro (Sbat). No fim, os escritórios do Chico Buarque e do espólio de Paulo Pontes nos ajudaram. Por enquanto, só podemos levar a peça no estado de São Paulo. Depois, se recebermos convites, será negociado caso a caso”.

Sobre a versão “Gota d’água [a seco]”, leia nosso post.

COMENTÁRIO
Tem algo de estranho quando você entra no teatro, vê uma peça de 1975, com cara e jeito de 1975, e tudo se encaixa. Não importa muito que a nova montagem {preta} de “Gota d’água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, se proponha a uma atualização que inclui rap, referências ao wifi e às selfies. O espírito ainda é aquele, de contestação do status quo no palco, e parece que cai bem nos dias de hoje.


Basta dizer que outra peça de Chico, “Roda Viva”, na montagem atual do Teat(r)o Oficina, vai abrir nova temporada em março porque lotou.  (No site, lê-se: “roda viva tá assim meio rolling stones, meio bethânia, meio woodstock”). Quem viu agora sabe que parece um mundo de 1968, quando estreou sob a direção de Zé Celso (que eu não tinha idade pra ver), apesar de também tentar uma atualização das mídias que sucederam à televisão. Em ambas as montagens, há um quê de saudosismo. Nada disso é ruim. Só é estranho.


A “Gota d’água {preta}” segue de perto o texto de mais de quatro décadas, mantendo na boca de Egeu referências aos anos de 1986 e 2000 como um futuro não muito promissor. A moeda nacional também ainda não passou pela supressão de zeros dos vários planos econômicos e se compra uma casa lá na Vila do Meio Dia por dez milhões. De novo: nada disso é ruim. Depois, vão entrando uns cacos nas falas que nos fazem lembrar que estamos aqui no século XXI: 2019 no Brasil.


Interessa notar como a peça ainda é atual em tantos pontos e, claro, por isso, motiva novas montagens. As perspectivas para muita gente brasileira ainda é uma carreira no futebol ou na música, como diz Amorim a Jasão: “Samba e futebol são a salvação da lavoura. Duvido que exista outra maneira de fodido brasileiro arranjar lugar ao sol”.  As perspectivas de arranjar esse lugar ao sol com o sucesso do samba “Gota d’água” é o que afasta Jasão de Joana e o lança nos braços de Alma, filha de Creonte. Na “Roda Viva”, vale lembrar, Benedito Silva vira Ben Silver, cantor pego na roda-viva do estrelato.


A mobilização de um elenco majoritariamente negro nutre politicamente esta nova montagem de Medeia: é uma manifestação estética que se impõe antes de tudo e que se fortalece com uma plateia segura de seu perfil social, como a que compareceu no Itaú Cultural.


Isso é bem diferente do que vi dois anos antes na montagem “Gota d’água [a seco]”. Restrita às figuras de Joana e Jasão, é um espetáculo musical acima de tudo, no cenário, no figurino, na performance.


Nesta versão {preta} estão muito presentes as demais figuras da peça, como Rodrigo Mercadante, que faz uma ocupação do palco no papel de Creonte. Aqui também é importante a voz do coro, como o é na “Roda Viva” de Zé Celso. Há músicos em cena e um DJ. A cenografia não tem ousadia, mas fica lá, bem evidente, uma placa que diz “Desde 1975”. Sem dúvida, isso quer dizer muito...  (Renata Cazarini)