LEITURA DE RECLUSÃO VOLUNTÁRIA




KING OEDIPUS, de Tawfiq Al-Hakim
Introduction by Tawfiq Al-Hakim

CARLSON, Marvin, ed. The Arab Oedipus – Four Plays from Egypt and Syria. Nova York: Martin E. Segal Theatre Center, 2005.

Trata-se de um volume de 450 páginas, das quais – por ora – li apenas 120. Acontece que, no momento, meu foco está na peça referida acima: uma abordagem autoral do mito de Édipo, via Sófocles, escrita em árabe pelo mais conhecido dramaturgo egípcio, que teve formação acadêmica também na França. A edição em inglês veio me salvar. O tradutor da peça de Al-Hakim é William Maynard Hutchins, 75 anos, que foi professor da Appalachian State University, Carolina do Norte (EUA), reconhecido tradutor da literatura árabe moderna. Esse volume que comprei não é de fácil acesso, mas a peça em questão pode ser encontrada noutra edição: 

AL-HAKIM, Tawfiq. Plays, Prefaces and Postscripts of Tawfiq Al-Hakim – Volume One: Theater of the Mind. Tradução do árabe de W. M. Hutchins. Washington: Three Continents Press, 1981.

O livro foi editado também pela Unesco, portanto, fico confortável em fornecer este link.
Background
A história do teatro árabe tem origem na chamada Renascença Árabe, no final do século XIX, quando houve experimentação com o teatro ocidental em algumas cidades onde a cultura francesa estava presente, como Beirute. Lá, em 1848, o pioneiro Marun al-Naqqash (1817-1855) encenou em sua casa uma peça baseada em “O Avarento”, de Molière (1622-1673).

No Egito, a primeira peça em árabe estreou em 1872, baseada na tragédia “Mérope”, de Voltaire (1694-1778). Dez anos depois, os teatros foram fechados durante uma revolução. Reabertos, encenaram Shakespeare: em 1890, “Romeu e Julieta”; em 1901, “Hamlet”. Só em 1905 há uma tradução do “Édipo” para o árabe, feita por Najib al-Haddad, mas a partir da versão de Voltaire.  Esse texto não sobreviveu, bem como a tradução de um Édipo francês por Farah Antun, encenada no Cairo em 1913 pela primeira companhia teatral egípcia, comandada por George Abyad, que passou a ser conhecido, então, como “o Édipo do teatro árabe”.

A primeira tradução da tragédia grega no Egito foi publicada apenas em 1939, pelo fundador dos estudos clássicos no país, Taha Husayn [ou Hussein] (1889-1973). O volume reuniu quatro peças de Sófocles, traduzidas do francês: “Édipo”, “Ajax”, “Electra”, “Antígona”. Husayn foi um grande divulgador dos méritos de Tawfiq al-Hakim (1898-1987), considerado o maior dramaturgo egípcio moderno, cujo “Rei Édipo” foi publicado em 1949. Ele compôs também uma peça “Pigmaleão” e “Praxa”, esta última intitulada com a abreviação do nome da protagonista, Praxágora, baseada na comédia aristofânica “Assembleia de mulheres”. 

 
Al-Hakim

Na Introdução que escreveu para as traduções, Hutchins (1981, p.3) diz que Al-Hakim é um muçulmano moderno que também é dramaturgo: “Ele dedicou atenção igual aos aspectos espirituais e aos aspectos materiais do ser humano”. O próprio Al-Hakim escreveu na Introdução à sua peça (1981, p.283) que sua posição frente à tragédia grega é “a de um pensador árabe do terceiro século do Islam”, equivalente ao século IX da era cristã, dentro da chamada “Idade de ouro do Islã”, quando se promoveu a tradução de clássicos gregos, incluindo a “Poética”, de Aristóteles, mas nenhuma peça clássica.

Para Ahmed Etman (1945-2013), que foi professor na Universidade do Cairo, tradutor para o árabe e autor, a mitologia grega foi um obstáculo à tradução do drama clássico e dos poemas homéricos. A poesia árabe pré-islâmica não tinha essa tradição. No capítulo “Translation at the Intersection of Traditions: The Arab Reception of the Classics”, publicado no Companion to Classical Receptions (2008), ele afirma que o mito não tem, na literatura árabe, função essencial como na poesia grega, em que “é quase impossível separar mitologia e poesia” (p.145). O politeísmo e as histórias de amor entre deuses e humanos foram evitados pelos tradutores árabes. Apenas em 1904 aparece a tradução da “Ilíada”, por Sulaiman Al-Bustani, baseada em versões em francês, italiano e inglês, embora ele tenha aspirado a ser autodidata no grego. Sobre o drama, Etman afirma que a inexistência de uma tradição teatral impedia até o entendimento de termos como “tragédia” e “comédia” (p.149).

Édipo árabe
Depois de uma entrada assim tardia no mundo árabe, a peça de Sófocles teve uma boa recepção a partir das versões de autores de relevância. Mas, como observa Marvin Carlson, a gravidade do personagem é matizada, chegando até a um Édipo farsesco num dos textos editados por ele no livro referido.

Para Al-Hakim, no entanto, o assunto é sério. Ele formula um conflito trágico moderno que será central na sua versão do “Édipo rei”. O conflito entre o fato e a verdade. Fato: Jocasta e Édipo se amam. Verdade: sua relação consanguínea destrói sua felicidade. 

No terceiro ato, Édipo diz: “Que inimigo escondido, que adversário oculto se ergue entre nós como um gigante? ... A verdade?” 

Essa fala, melhor, esse questionamento sintetiza a proposta filosófica que permeia a peça de Al-Hakim, uma tragédia em prosa dividida em três atos, com a presença de um coro de tebanos no segundo ato. Como o modelo trágico aristotélico, o Édipo árabe aqui tratado não é extremamente virtuoso, mas também não é um vilão que pareça merecer tamanha punição. Contudo, abrigado num “palácio da felicidade”, como Jocasta chega a qualificar a vida familiar que constituíram, o personagem trágico tem que cair devido à sua falha de caráter. E, nesta peça, Édipo é ainda mais falho.

(Atenção! Spoiler)
O vilão mesmo é Tirésias: vate cego e homem sagrado para os tebanos, ele é um manipulador. Forja a bravura mítica de Édipo como herói que desvendou o enigma e derrotou a Esfinge. Valente, Édipo havia matado um leão comum, mas compactuou com Tirésias, alcançando o trono e a rainha. Portanto, este Édipo mente. Mas é feliz. Dezessete anos se passaram. Uma família se constituiu. Antígona, personagem encarregada da primeira e da última fala da peça, tem irmãos (personae mutae). Édipo sabe que é filho adotivo do rei de Corinto, porém não leva consigo o peso de um oráculo que prevê parricídio e incesto. Aqui o destino não tem vez, apenas a justiça divina.

Como afirma Hutchins (1981, p.4): “É atribuída a Édipo uma falha de caráter – a curiosidade – e Tirésias torna-se um vilão para evitar que a peça entre em conflito com as noções islâmicas modernas da justiça divina. A tragédia não poderia ter como causa a maldade divina. A fórmula é que o homem age de acordo com o livre arbítrio, mas faz isso, sem saber, segundo o que está programado pela vontade divina”.

Este Édipo é sempre pautado pelo intelecto, não pela fé. No primeiro ato, lamentando a peste, Édipo diz: “Por que Deus me amaldiçoou? É por que não aceito o que vocês atribuem a ele até ter realizado um inquérito que satisfaça meu intelecto?”

Não é apenas Jocasta que desacredita oráculos, como na peça de Sófocles, mas Édipo também não acredita que a causa da peste que assola Tebas seja a falta de punição do assassino de Laio, mesmo assim, prossegue na investigação para honrar seu compromisso com o povo.

Édipo sabe que o suposto oráculo que decretou a exposição do bebê herdeiro do reino de Tebas foi invenção de Tirésias, que tinha um propósito, o de pôr fim à hereditariedade do poder, de colocar no trono alguém que tivesse prestado um serviço a Tebas. O que coube a Édipo, com a suposta vitória sobre o “pai terror”, nome do monstro-esfinge da peça.

No segundo ato, após o inquérito conduzido por Édipo ter revelado que, afinal, é o seu herdeiro legítimo que ocupa o trono de Tebas, Tirésias diz: “Deus prega uma peça, faz arte, dando forma a uma história... uma história baseada no meu pensamento. No que diz respeito a Édipo e Jocasta, é uma tragédia. No que me diz respeito, uma comédia”.

Como afirma Hutchins (1981, p.5): “Os esforços humanos são uma luta com forças além do seu alcance. O poder e o conhecimento humanos têm limites que precisam ser postos à prova, embora o ser humano saiba que seus esforços vão se deparar com o escárnio celeste. A vida é, então, um tipo de prisão”.


Ambiente de família
Para Al-Hakim, é o sentimento religioso que constitui o espírito da tragédia clássica grega ou de qualquer outra. Diz ele que o fundamento da verdadeira tragédia é a sensação de que o ser humano não é solitário nesta existência. Ele afirma que consegue entender o pensamento europeu de que o homem está sozinho, mas que seu coração oriental não consegue acreditar nisso.

“Eu também vejo na história de Édipo um desafio do homem a Deus ou a forças invisíveis. Eu dei destaque a esse desafio, mas também enfatizei, ao mesmo tempo, as consequências dessa presunção, pois nunca senti que o homem é solitário nesta existência”. (1981, p.286)

(Atenção! Spoiler)
Para além do sentimento religioso, o mais impactante na peça de Al-Hakim é o que ele chama de “ambiente de família”. É em torno dessa ideia central que a tragédia pagã ganha uma dimensão que parece compatível com o islamismo, pois esse Édipo não se abala terrivelmente com o incesto praticado, envidando todos os esforços para manter o seu “palácio da felicidade”.

O terceiro ato da peça admite um diálogo entre Jocasta e Édipo depois da revelação de suas relações consanguíneas e antes dos fatos trágicos que virão a seguir, tal como na peça de Sófocles, ou seja, o suicídio dela e o cegamento dele. Mas a primeira cena do terceiro ato evoca o “Édipo” latino de Sêneca, em que Jocasta e Édipo fazem breve troca de falas. Mais ainda, dois elementos caracterizadores do diálogo senequiano são retomados na peça árabe: 1) a insegurança de Jocasta no tratamento com Édipo: se deve chamá-lo de filho ou de marido (“Oedipus! My... I don’t know what to call you.” / v.1009: Quid te uocem?); 2) a referência de Jocasta ao útero como fonte da desgraça.

Para Édipo, tanto faz ser filho ou marido, desde que a família permaneça unida, mesmo que exilada. O desfecho será que os filhos ficarão com o tio e novo rei, Creonte. Surpreendente na formatação dada a esta versão do “Édipo rei” é o protagonismo de Antígona com as falas de abertura e encerramento. Ela abre a peça com um vocativo dirigido a Jocasta: “Mãe”, indicando já o ambiente de família no palácio. Ela encerra a peça dirigindo-se a Édipo: “Pai”, afirmando a devoção mítica dessa filha que o tem como herói.

A crítica à peça não é unânime, principalmente quanto à harmonização com os ensinamentos islâmicos. Mesmo quem a defende admite que a peça não está inteiramente de acordo com a visão de mundo islâmica. Karen L. Carducci, do Departamento de Grego e Latim da Universidade Católica da América, em Washington, por exemplo, diz que a caracterização de Jocasta por Al-Hakim, que dá maior dimensão ao personagem, deve ser levada em conta na crítica. (CARDUCCI, Redeeming Jocasta: Tawfiq al-Hakim’s ‘Eastern’, ‘Arab’ Reception of Sophocles’ Oedipus Tyrannus, 2019)

A Jocasta árabe é monoteísta e tem outros atributos de mulheres virtuosas da cultura islâmica: o amor pelo núcleo familiar, a dedicação ao lar e a obediência ao marido e ao pai, exceto quando contrariam sua fé. Mulheres que encampam essa moralidade estão incumbidas de definir o futuro do Egito. Até o suicídio de Jocasta, contrário aos preceitos islâmicos, pode ser lido como consequência natural da insistência de Édipo em manter-se junto dela, resultando na autopunição do protagonista e no fim do convívio incestuoso. No todo, uma espécie de redenção.
(Renata Cazarini)